DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

10/02/2014

Uma crônica de Hilda Hilst




A morte me apareceu certa noite no quarto. Era uma menina vestida de negro, os cabelos loiros escorridos. O vestido era estufado, brilhoso, assim que a vi, soube que era a morte. Recostou-se em um canto da parede à minha frente, os pezinhos cruzados, não usava sapatos.
 Então, Hans, está pronto?
 Não, respondi-lhe agoniado.
 Sorriu, tinha dentes negros e minúsculos. Assustei-me. Esperou que eu me acalmasse e perguntou:
 Quanto tempo você ainda deseja?
 Algum tempo.
 Respondeu-me que era preciso que eu fosse mais preciso. A frase tinha humor e pude até sorrir.
 Disse-lhe:
 Mais dez anos talvez.
 Dez anos talvez, é hoje. Impossível. Não. Para ser mais exata: dez anos e dez dias. O tempo é outro quando eu apareço.
 Senti náuseas e uma dor profunda no peito. Ainda pude perguntar-lhe:
 Há uma outra vida? 
 Sim, milhões de crianças como eu. Você será uma delas. É tedioso e até inaceitável, mas é assim.
 O espelho do quarto refletiu um menino vestido de negro, calças curtas e camisa comum, os cabelos loiros escorridos.
 Olhei-me assombrado. Depois disso, nunca mais me vi.
 
 
Publicado em Cascos e Carícias, reunião de crônicas escritas entre 1992-1995 para o Correio Popular, de Campinas(SP)

4 comentários:

  1. Um arraso. Quando uma leitura me cala, poderia ficar em silêncio por instantes eternos. Ela me cala. Nossa, como ela me cala!!!

    Beijos, Ci!

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  2. Ler Hilda Hilst é sempre um (belo) exercício de reflexão. Como é bom vir aqui...

    Beijo, amiga!

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