DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/07/2018

O homem do mar




O homem do mar era uma construção serena
peixe fresco
corda
alcatrão
e a lembrança de velhos poderes imperiais no Canal

O nosso foi um fogo que queimou sem nos queimar
morreu na praia
estátuas silenciosas de sal
virávamos páginas em branco
a velha pergunta transbordando sempre
de cada livro no alto da biblioteca de alto preço
de cada escultura construída no além-mar

O mau fado me deixou a ver navios
ressaca impronunciável e alheia
falsas falésias
falácias
enseada escura
e canoa furada

Sou

verso ou reverso
par ou ímpar
yin ou yang
prosa ou verso
sim ou não
nunca um talvez

Encontro

poço turvo, escuro
negro espaço em que me recolhi
sem me dar conta jamais
Estranha, absurda caverna
fui, sou, serei sempre
sua mais fiel, eterna
residente

[Sem título]

Transitoriedade da alma
o que isso significa? Não sei,
deve ser que ela está aqui de passagem.
Só pode. Faz sentido.
Tem gente que vem a trabalho,
eu vim a passeio - e não gostei -
o resplandecer da alma é efêmero.

Hilda Machado fez mestrado em Artes(USP), doutorado em História Social pela Universidade Federal Fluminense e professora nessa mesma Universidade; estudou direção de cinema em Cuba, atuando posteriormente como pesquisadora em várias universidades do Brasil e do exterior; recebeu o prêmio de melhor direção nos festivais de cinema de Gramado(RS), Recife e Rio de Janeiro em 1987 pelo curta-metragem Joilson marcou. Os poemas apresentados acima, foram extraídos do livro Nuvens
organizado pela autora e datado de julho de 1997, publicado somente agora, em 2018.
Hilda Machado faleceu em São Paulo, 2007.  

24/07/2018

A baleia azul




Nos idos de 1960/70 a literatura latino-americana passou por uma efervescência fabulosa; autores como G. G. Márquez, Carlos Fuentes, José Donoso, José Maria Arguedas, Juan Carlos Onetti e Juan José Arreola nos presentearam com verdadeiras obras primas!
Uma delas é a  de Arreola, que transcrevo abaixo:


Interview

- Por fim, os leitores gostariam de saber em que está trabalhando
atualmente. Poderia dizer?
- Na noite passada ocorreu-me uma ideia, não sei...não sei...
- Diga assim mesmo.
- Seria alguma coisa como uma baleia. É a esposa de um jovem poeta, digamos, um homem simples e comum...
- Ah, sei! A baleia que engoliu Jonas.
- Sim, sim, mas não somente Jonas. Uma espécie de baleia total,
que carrega dentro de si todos os peixes que se entredevoram, é claro, sempre o maior comendo o menor, e começando pelo infusório microscópico.
- Muito bem, muito bem! Quando era criança eu também imaginei
um animal assim, masque era talvez um canguru em cuja bolsa...
- Bem, na verdade não vejo inconveniente algum em substituir a imagem da baleia pela do canguru. Simpatizo com os cangurus,
com essa grande bolsa em que o mundo pode caber completamente
Apenas, você sabe, tratando-se da esposa de um jovem poeta, a imagem da baleia é muito mais sugestiva. Uma baleia azul, se prefere, para não deixar de lado a elegância.
- E como lhe surgiu a ideia?
- Foi um presente do próprio poeta, marido da baleia.
- Como é isso?
- Num dos seus mais belos poemas ele se concebe a si mesmo como
uma rêmora pequenina aderida ao corpo da grande baleia noturna, a esposa adormecida que o conduz em seu sonho. Essa enorme baleia feminina significa mais ou menos o mundo, do qual
o poeta só pode cantar um fragmento, uma nesga da doce pele que
o alimenta.
- Receio que suas palavras desconcertem os leitores. E o diretor, sabe como é...
- Nesse caso dê uma interpretação tranquilizadora das minhas ideias. Diga simplesmente que a baleia tragou a todos nós, eu, você, os leitores da revista e o diretor. Que vivemos nas suas entranhas, que ela nos digere lentamente, e lentamente vai nos atirando ao nada...
- Muito bem. Não precisa acrescentar coisa alguma: é perfeito, está dentro do estilo da nossa revista. Apenas uma coisa mais: pode ceder-nos uma fotografia sua?
- Não. Prefiro dar uma visão panorâmica da baleia. Todos nós estamos representados nela. Com um pouco de esforço posso ser
distinguido perfeitamente - não recordo bem onde - envolto numa
pequena auréola.


 Juan José Arreola em Confabulário total - Jalisco (México), 1918-2001.

22/07/2018

Nem tudo que brilha é ouro !


Há qualquer coisa no ar
além dos aviões da Panair

Apporely , também conhecido como Barão de Itararé (1895-1971)


Nem tudo que parece, é...!?

13/07/2018

As "anedotas de abstração", de Guimarães Rosa

Guimarães Rosa entre sertanejos, 1952


Em um dos prefácios de Tutameia, último livro que G.Rosa escreveu, logo de cara somos impactados(as)com o título: Aletria e hermenêutica. Segundo ele, "a estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota". Após discorrer um pouco sobre o tema, Rosa nos apresenta uma pequena antologia do anedotário popular dignos de nota, como os exemplos que se seguem:

Siga-se, para ver, o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua empurrando sua carrocinha de pão, quando alguém lhe grita: - "Manuel, corre a Niterói, tua mulher está feito louca, tua casa está pegando fogo!..." Larga o herói a carrocinha, corre, voa, vai,
toma a barca, atravessa a Baía quase...e exclama:
- "Que diabo! eu não me chamo Manuel, não moro em Niterói, não sou casado e não tenho casa..."
De natureza análoga, nos apresenta aquela do cidadão que viajava de bonde, sendo o único passageiro, num dia de chuva, e, como estivesse sentado debaixo de uma goteira, perguntou-lhe o condutor por que não trocava de lugar. Ao que ele respondeu: - "Trocar...com quem?"

- "O açúcar é um pozinho branco, que dá muito muito mau gosto ao café, quando não se lho põe..."

"Sobre uma escada um dia eu vi
Um homem que não estava ali;
Hoje não estava à mesma hora.
Tomara que ele vá embora."

"O O é um buraco não esburacado.
O avestruz é uma girafa; só o que tem é que é um passarinho.
Haja a barriga sem o rei. (Isto é: o homem sem algum rei na barriga.)
Se o tolo admite, seja nem que um instante, que é nele mesmo que está o que não o deixa entender, já começou a melhorar em argúcia."

João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo(MG) em 1908 faleceu em 1967. 
 

01/07/2018

Canto dos emigrantes




Com seus pássaros
ou com a lembrança de seus pássaros,
com seus filhos
ou com a lembrança de seus filhos,
com seu povo
ou com a lembrança de seu povo,
todos emigram

de uma quadra a outra
do tempo,
de uma praia a outra
do Atlântico,
de uma serra a outra
das cordilheiras,
todos emigram.

Para o corpo de Berenice
ou o corpo de Wall Street,
para o último templo
ou a primeira dose de tóxico,
para dentro de si
ou para todos, para sempre
todos emigram.

****

Casa vazia

Poema nenhum, nunca mais,
será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,

para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,

uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,

ou cães latindo,
noite e dia,
dentro de uma casa vazia.

Alberto da Cunha Melo, Jaboatão dos Guararapes(PE) - 1942-2007

24/06/2018

Vent du Nord-Est




L'homme n'a pas encore commencé son travail: il est encore à preparer ses outils. Quand le temps sera venu, à peine gardera-t-il ce nom d'homme...
(Le grand vent qu'il fait, qui crie dans la cheminée, me souffle des insanités.)
- Quelle acquisition, la mémoire!...
Quand l'homme aura reconnu qu'il n'est rien, alors cela pourra commencer.
Alors l'intelligence pourra ou disparaître, ou tout remplacer? Elle commencera
à bâtir.
Les questions, les énigmes nécessaires auront été avalées. Naître, souffrir, mourir ne feront plus de difficultés. Il y aura longtemps que l'énergie, les
matières, les êtres vivants auxiliaires seront à disposition. Le commerce, l'industrie, ne seront plus. Il y aura une seule scienceet ele sera presque
innée.
La terre ne sera qu'une ville. Rien ne sera plus naturellement...c'est-à-dire aveuglément

Paul Valéry, em Poésie perdue (1916) - Paris Gallimard, 2000


Vento do Nordeste

O homem ainda não começou seu trabalho: está ainda preparando suas ferramentas. Quando chegar o momento, conservará apenas o nome de homem...
(O grande vento que faz, que assobia na lareira, me sopra insanidades.)
- Que aquisição, a memória!...
Quando o homem tiver reconhecido que é nada, então poderá começar. Poderá então a inteligência desaparecer ou tudo substituir? Ela começará a construir.
As questões, os enigmas necessários terão desaparecido. Nascer, sofrer, morrer
não serão mais problemas. Haverá um tempo que a energia, as matérias, os seres vivos auxiliares estarão disponíveis. O comércio, a indústria, não existirão. Haverá apenas uma ciência e ela será quase inata.
A terra será apenas uma cidade. Nada mais será feito de forma natural - isto é,
às cegas.                                                                                         

18/06/2018

Poema dum funcionário cansado





A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita a cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
 com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só.
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado num dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
flor rapariga amigo menino irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida num quarto só.

Antônio Ramos Rosa, Faro(Portugal) 1924-2013

12/06/2018

ASPIRAÇÃO

Adalgisa Nery por Ismael Nery


Desejo de desmontar meu corpo
E atirá-lo aos quatro ventos do mundo,
De enfrentar a luz do sol
Até que seu calor pulverize meus ossos,
De atirar-me no oceano
Até que o batimento de suas águas
Transforme meus cabelos em algas perdidas,
De gritar contra as montanhas
Até que o eco se ausente de minha voz,
De matar a consciência de mim mesma
Até que eu possa viver.

*****
PATRIMÔNIO

Pesam nos meus ossos
Os meus pensamentos
Choram nos meus olhos,
As visões neles crescidas,
Soluçam no torpor das minhas carnes
Ancestrais desalentos.
Sangram os meus pés
Na inútil andança
Da imaginação liberta.
Pulveriza o meu espírito
A solidão do suicida ignorado
E cresce assustadoramente dentro de mim
A calmaria que precede o fim.

Adalgisa Nery (Rio de Janeiro, 1905-1980)Autora de dois romances, várias crônicas, e sobretudo, vários livros de poemas. Foi eleita deputada três vezes tendo os direitos cassados em 1969. Foi casada com o pintor Ismael Nery e com o jornalista
Lourival Fontes. Entre livros publicados podemos destacar os de poemas, A mulher ausente, Ar do deserto, Cantos de angústia, As fronteiras da quarta
dimensão; os romances A imaginária e Neblina; e um livro de crônicas, Retrato sem retoque. 

04/06/2018

O preço da democracia




Doris Haddock, trabalhadora aposentada, caminhou de Los Angeles
até Washington: uma tartaruga atravessou os Estados Unidos,  de
costa a costa.
Ela se pôs a caminhar para denunciar a venda da democracia aos milionários que pagam as campanhas dos políticos, e caminhando, a cada passo, a cada etapa, seus discursos iam atraindo mais e mais
gente. Estava já há mais de um ano caminhando, frita pelos sóis, congelada pelos frios, voada pelos ventos, quando a neve a paralisou. Uma tremenda tormenta de neve despencou sobre as montanhas do oeste da Virgínia.
No povoado de Cumberland, Doris festejou seu aniversário. Noventa velinhas. E continuou a viagem de esqui.
Enquanto viajou através da neve, o último mês inteiro.
Enquanto nascia o século vinte e um, chegou à cidade de Washington. Uma multidão acompanhou-a até o Capitólio. Lá trabalham os legisladores, a mão de obra política das grandes empresas que retribuem seus serviços.
Da escadaria, Doris pronunciou um discurso lacônico. Apontando
para o pórtico do Capitólio, disse:
- Isso aqui está se transformando numa casa de putas.
E foi-se embora.


O voto e o veto

Corria o ano de 1916, ano de eleições na Argentina. 
No povoado de Campana, votava-se nos fundos do armazém de armarinhos.
José Gelman, carpinteiro de profissão, foi o primeiro a chegar. Ía votar pela primeira vez na vida, e o dever cívico inchava-lhe o peito. Naquela manhã, aquele imigrante que não havia conhecido
outra coisa além do despotismo militar na longínqua Ucrânia iria
ingressar na democracia.
Quando José estava ponto seu voto na urna, voto pelo Partido Radical, uma voz rouca paralisou sua mão:
- Você está se enganando de pilha - advertiu a voz.
E através da grade da janela surgiu uma carabina. O cano apontou
a pilha correta, onde estavam as células do Partido Conservador.

Eduardo Galeano( 1940-2015)  em Bocas do tempo.