Gérard Richter
Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos. Por isso aquele que despreza o ambiente não é o mesmo que dele se alegra ou padece. Na vasta colônia do nosso ser há gente de muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente. Neste mesmo momento em que escrevo, num intervalo legítimo do trabalho hoje escasso, estas poucas palavras de impressão, sou o que as escreve atentamente, sou o que está contente de não ter nesta hora de trabalhar, sou o que está vendo o céu lá fora, invisível de aqui, sou o que está pensando isto tudo, sou o que sente o corpo contente e as mãos ainda vagamente frias. E todo este mundo meu de gente entre si alheia projecta, como uma multidão diversa mas compacta, uma sombra única - este corpo quieto e escrevente com que reclino, de pé, contra a secretária alta de Borges onde vim buscar o meu mata-borrão, que lhe emprestara.
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Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que sentí outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espetáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu.
Encontro às vezes, na confusão vulgar das minha gavetas literárias, papéis escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho; desreconheço-me neles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Sentí-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora despertado como de um sono alheio.
É frequente eu encontrar coisas escritas por mim ainda muito jovem - trechos dos dezassete anos, trechos dos vinte anos. E alguns têm o poder de expressão que me não lembro de poder ter tido nessa altura da vida. Há em certas frases, em certos períodos a poucos passos da minha adolescência, que me parecem produto de tal qual sou agora, educado por anos e por coisas. Reconheço que sou o mesmo que era. E tendo sentido que estou hoje num progresso grande do que fui, pergunto onde está o progresso se então era o mesmo que hoje sou.
Do "Livro do Desassossego, composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa" por Fernando Pessoa
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