DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/04/2011

Manual da paixão solitária





Um dia - ou uma noite, de preferência uma noite, a noite é mais propícia para gente como nós e para a evocação da memória que deixamos - alguém lembrará de mim. Quando isso acontecerá, não sei. Daqui a muito tempo, acho. Séculos, milênios, quem sabe. A entidade que sou - pobre entidade, modesta entidade, lamentável entidade - terá desaparecido. Estarei reduzido a diminutas partículas que ventos e águas disseminarão pelo mundo. Uma partícula fará parte de uma pedra, outra estará na casca de uma fruta, outra na córnea de um leão, no pelo de uma raposa, no osso de um ser humano. Dispersão à parte, isso é permanência? Eu gostaria muito de responder que sim; negar a morte faz parte de nossa precária condição humana, e recorremos a todos os malabarismos do pensamento, a todas as formas da fantasia para atingir esse objetivo. Mas não adianta, não é? Não adianta. Metáforas consolam, mas não resolvem nosso problema: vamos adoecer, vamos morrer, e as partículas não nos preservarão. Partículas não pensam, não almejam, não tentam antecipar o futuro. Partículas não anseiam por se reunir, como ansiaram por se reunir as pessoas que aqui estão; partículas não anseiam por reconstruir o ser humano de que um dia fizeram parte. Partículas não atendem por um nome, partículas não têm sonhos nem desejos, partículas não escrevem em pergaminhos, não interpretam o que está escrito em pergaminhos. Não posso, portanto, ter ilusões. Evocar não é ressuscitar. Essa história de "viverá para sempre na memória dos pósteros" é mentira. Mentira piedosa e consoladora, mas mentira. Não que eu recuse as ilusões ou a mentira; de certo modo, as ilusões e a mentira são, para mim, um modo de vida. Sou apenas um criador de sonhos. Do ponto de vista do futuro, sou descartável. Se tenho algum lugar reservado, é na lata de lixo da história, gigantesco recipiente que já recebeu, milhões, bilhões de pessoas, com suas frustradas aspirações, seus desejos não realizados, seus falidos projetos.





Moacyr Scliar, Porto Alegre-RS (1937-2011)

27/04/2011

Dos cílios



Os cílios agarravam-se às pálpebras quando tentei fechar meus olhos. Mas você assoprou e todos voaram. De novo nasceram e de novo voaram. Não faça mais isso! Quem vai cortar a lágrima em fatias no dia em que você for embora?


Rita Apoena

25/04/2011

Aleph, Aleph

Paul Cézanne

Qué veo en esta mesa: tigres, Borges, tijeras,

mariposas

que no volaron nunca, huesos

que no moveron esta mano, venas

vacias, tabla insondable?


Ceguera veo, espetáculo

de locura veo, cosas que hablan solas

por hablar, por precipitarse

hacia la exiguidad de esta especie

de beso que las aproxima, tu cara veo


*****


Que vejo nesta mesa: tigres, Borges, tesouras,

mariposas

que nunca voarão, ossos

que não moverão esta mão, veias

vazias, mesa insondável?

Vejo cegueira,

vejo espetáculo

de loucura, coisas que falam somente

por falar, para precipitar-se

até a exiguidade desta espécie

de beijo que as aproxima,

vejo teu rosto



Gonzalo Rojas, poeta chileno que faleceu hoje, aos 93 anos.

(1917-2011) - Tradução livre

Matadouro



A baba do boi é do boi

O berro do boi é do boi

A dor do boi é do boi

A morte do boi é do boi


Mas o boi não é do boi

O carro de boi não é do boi

A bosta de boi não é do boi

A língua de boi não é do boi

A costela de boi não é do boi

O chifre de boi não é do boi

O couro de boi não é do boi

A carne de boi não é do boi


Não é do boi o bumba-meu boi

Quase nada do boi é do boi

Quase tudo do boi é do homem

E o que é do homem o bicho não come



Celso Borges, São Luís(MA) - 1959-

23/04/2011

Para que serve a arte?

Kurt Schwitters



Ao descrever sua cidade ideal, Platão pede que os poetas sejam excluídos, porque ao invés de suscitar a emoção, deveriam fortalecer a razão. Jean-Jacques Rousseau, teórico do pré-revolucionário "Contrato Social, aprova em sua "Carta a d'Alembert sobre os espetáculos", a proibição do teatro em Genève e recomenda o desaparecimento dessa arte corruptora "que excita as almas pérfidas". Trata-se, nos dois casos, de subordinar o papel da arte à sua utilidade, política ou moral. Nos dias de hoje essas propostas pareceriam, sem dúvida nenhuma extremamente reacionárias: quem poderia colocar em questão a autonomia da arte? Como aceitar que outros critérios além dos artísticos fundamentem o valor de uma obra? Julgar a arte em função de sua mensagem, de suas vertentes sociais, seria, não apenas correr o risco de privá-la de sua liberdade essencial, mas desnaturalizá-la: a arte não tem definitivamente, de prestar contas, senão a si mesma.

O debate parece fechado, mas não é: além da censura esporadicamente reclamada para atender à crenças, aos bons costumes, etc., o questionamento sobre o papel da arte se dilui entre as demandas feitas pelas instiuições "culturais", para justificar principalmente suas subvenções no passado pela sua contribuição à emancipação democrática, e, atualmente, por sua atuação no "vínculo social", seja lá o que se entenda por isso. Posição "elitista" ou posição "populista"? Arte pela arte, ou arte para o outro?

Seriam essas as únicas escolhas possíveis. Entretanto, não é certo que esta evidência binária não reconstitua a construção histórica do afrontamento ideológico, de lógica incontestável.

A controvérsia criada em torno da obra do pintor Gustave Courbet, que viu Émile Zola opor-se à obra (póstuma) de Pierre-Joseph Proudhon é bastante esclarecedora. Courbet pediu a Proudhon para escrever o texto de um de seus catálogos de exposição. Courbet foi então vítima de acirradas críticas sob a alegação de haver vulgarizado a arte: " muito realista", " arte materialista", segundo Louis Aragon. Proudhon define o que são a arte e o artista em sua essência. Elimina a oposição entre realismo e idealismo, afirmando ser impossível separar o real do ideal, o objeto do olhar que lhe dá sentido. E afirma que o artista "é chamado a contribuir para a criação de um mundo social, oferecendo uma representação idealista da natureza e do homem, em vista do aperfeiçoamento físico, intelectual e moral da humanidade, de sua justificação por si mesma e finalmente de sua glorificação." É em nome do socialismo revolucionário que ele pode afirmar serenamente que a arte pela arte não é nada. A beleza sonhada pelos artistas tem por missão embelezar o homem, e o talento nunca é próprio de um indivíduo, mas "o produto da inteligência universal e de uma ciência geral acumulada por uma multiplicidade de mestres, e de um certo número de indústrias inferiores." E o artista, se possui qualidades diferentes, não é em nada superior ao operário, diz ele. Evidentemente é emocionante.

A réplica de Zola é arrogante, chocante, e sem dúvida mais de acordo com aquela época: "Nosso ideal são nossos amores e nossas emoções", são a originalidade, a livre expressão de uma personalidade que importa, e não sua utilidade. Théophile Gautier já havia lembrado no prefácio de "Mademoiselle Maupin", que não existe nada verdadeiramente mais belo do que aquilo que não serve para nada - o lugar mais útil em uma casa, são as latrinas..."

Por fim, restaria definir em que consiste a originalidade de uma virtude artística. Zola a esboça, destacando que a pintura não se resume em seu objeto. E é exatamente o individualismo que ele saúda naquele final do século XIX, quando desabrochavam o capitalismo, os valores burgueses e o crescimento das massas. O que ele quereria dizer quando declarou que o artista vai "vivre tout haut"? O direito flamejante a singularidade que legitimaria a arte contra o igualitarismo, ou a secreta utilidade da cristalização de uma vida, tornando sensíveis as tristezas e as grandezas possíveis? Será que existe um antagonismo absoluto, ou a própria obra não pode ultrapassar esta contradição, quaisquer que sejam as afirmações de seu autor? Como dizia Charles Baudelaire, toda estética é sempre uma moral e uma política - visão do mundo e hierarquia de valores...



Evelyne Pieiller, jornalista, escritora e dramaturga francesa

20/04/2011

Samuel Becket, um poema



Sou areia que se esvai

entre o cascalho e a duna

a chuva de verão chove-me na vida

sobre mim a vida que me foge

persegue-me e vai

acabar no dia do começo



Caro instante vejo-te

nesta névoa que se levanta

quando não tiver de pisar

estas longas soleiras movediças

e viver o espaço de uma porta

que se abre e que se fecha

18/04/2011

"O umbigo do mundo" !


Apelidada de "tepita te henua" ou "o umbigo do mundo"!, a Ilha de Páscoa (Rapa Nui, em idioma polinésio), é uma ilha da Polinésia oriental, de origem vulcânica situada no Oceano Pacífico, que pertence ao Chile. Seus primeiros habitantes teriam sido do Taití, há centenas de anos. Segundo alguns historiadores a ilha foi descoberta em 1722, num domingo de páscoa (daí o seu nome), pelo holandês Jakob Roggeveen. Havia então cerca de oito mil habitantes, mas por volta de 1805 navios peruanos aportaram à ilha, aprisionaram a metade da população para vendê-la como escravos para as minas peruanas de guano.

Atualmente a ilha tem como atração turística os moais, esculturas esculpidas em pedras em formas humanas, espalhadas por toda a ilha, e sempre de costas para o mar. São mais de mil estátuas de várias formas e tamanhos. Estima-se que as mais antigas datem do século VIII, com cerca de seis metros de altura e as mais recentes do século XIII, algumas alcançando até doze metros de altura. Quase todas elas foram esculpidas próximo a cratera do vulcão Rano Raraku, de costas para o mar.

Por volta do século XV o culto aos moais foi substituído pelo culto ao "homem-pássaro" ou Tangata Manu. Nesse ritual era homenageado o deus Makemake (durante o inverno), quando nadadores representando os chefes tribais da ilha, íam até a ilhota Matu Nui a 1.600km da costa, para pegar o primeiro ovo da andorinha negra; o vencedor recebia o título de Homem-pássaro e durante todo o ano era o dono absoluto da ilha.

A última cerimônia aconteceu em 1876, quando missionários católicos chegaram à ilha e proibiram(!) o ritual.




ilhota Moto Nui (culto ao homem-pássaro)



16/04/2011

Meu ideal seria escrever...

Edward Hopper
Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse - "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria - "mas essa história é mesmo muito engraçada".

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse - e tão fascinante de graça, tão irressistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aquelas mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse - "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!". E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea hoenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês em Chicago - mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nuca ouví uma história assim tão engraçada, e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouví-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já tivesse morto, sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento, é divina."

E quando todos me perguntassem - "mas de onde é que você tirou essa história?" - eu responderia que ela não é minha, que eu a ouví por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouví um sujeito contar uma história..."

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.


Rubem Braga, Cachoeiro do Itapemirim-ES (1913-1990)

13/04/2011

Pero el tiempo...



"Qué hay en tu corazón", me preguntó la vida.

Era una pregunta tan brusca,

buscaba tan poca excusa,

que quise responder: Nada!

Pero el tiempo (que en pie junto a una

columna de piedra

obligó hace mucho a sentarse a todas las catedrales)

me dijo: "Mentiroso, ese lugar que en ti

han ocupado las mujeres

sólo en el infierno permanesce vacio!"


Vladimir Holan, Praga (1905-1980)

11/04/2011

O nascimento da crônica

Adão e Eva, de Francis Picabia
Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e la glace est rompue; está começando a crônica.

Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.

Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhe perder o paraíso, cessou com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno, vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; ma há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não poderia comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria, mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz que outra.

Não afirmo sem prova.

Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: Que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!

Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e a fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, e daí às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não fazia àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?


Machado de Assis, (1839-1904), em As Cem Melhores Crônicas Brasileiras - Editora Objetiva

09/04/2011

Pedro Páramo ( Trechos )



"No começo, você deve escrever levado pelo vento, até sentir que está voando. A partir daí, o rítmo e a atmosfera se desenham sozinhos. É só seguir o voo. Quando você achar que chegou aonde queria chegar é que começa o verdadeiro trabalho: cortar, cortar muito".



Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.

Minha mãe me disse. E eu prometí que viria vê-lo assim que ela morresse. Apertei suas mãos em sinal de que faria isso; pois ela estava morrendo, e eu decidido a prometer tudo. "Não deixe de ir visitá-lo" recomendou ela." O nome dele é assim e assado. Tenho certeza que ele vai gostar de conhecer você." Então não tive outro jeito a não ser dizer a ela que faria isso, e de tanto dizer continuei dizendo mesmo depois que minhas mãos tiveram trabalho para se safarem de suas mãos mortas.

Antes ainda, ela tinha me dito:

- Não peça nada a ele. Exige o que é nosso. O que ele tinha de ter me dado e não me deu nunca... O esquecimento em que nos deixou, filho, você deve cobrar caro.

- Vou fazer isso, mãe.

Mas não pensei em cumprir minha promessa. Até que agora comecei a me encher de sonhos, e de soltar as ilusões. E assim foi se formando em mim um mundo ao redor da esperança que era aquele senhor chamado Pedro Páramo, o marido da minha mãe. Por isso vim a Comala.

*****

Sentí o retrato de minha mãe guardado no bolso da camisa, esquentando meu coração, como se ela também suasse. Era um retrato velho, carcomido nas beiradas; mas foi o único que conecí. Eu havia encontrado o retrato no armário da cozinha, dentro de uma caçarola cheia de ervas: folhas de capim-limão, flores de Castela, ramos de arruda. Desde então guardei o retrato. Minha mãe sempre foi inimiga de deixar-se fotografar. Dizia que os retratos eram coisa de bruxaria. E pareciam ser; porque o dela estava cheio de furos como de agulha, e na direção do coração tinha um bem grande onde podia muito bem caber o dedo médio.

*****

O vento nos fazia rir; juntava o olhar de nossos olhos, enquanto a linha corria entre nossos dedos atrás do vento, até se romper com um leve rangido como se tivesse sido cortado pelas asas de algum pássaro.

{..........} Então ouviu o pranto. Aquilo o despertou um pranto suave, delgado, que talvez por ser delgado tenha passado pela teia do sono, chegando ao lugar onde os sobressaltos se aninham. (.............) Pela porta via-se o amanhecer no céu. Não havia estrelas. Só um céu chumbo, cinzento, ainda não clareado pela luminosidade do sol. Uma luz parda, como se o dia não fosse começar, mas como se apenas estivesse chegando o princípio da noite.

Lá fora, no pátio, os passos, como de gente que ronda. Ruídos calados. E aqui, aquela mulher, de pé no umbral; seu corpo impedindo a chegada do dia; deixando aparecer, através dos seus braços, fiapos de céu, e debaixo de seus pés réstias de luz; uma luz borrifada como se o solo debaixo dela estivesse inundado de lágrimas. E depois o soluço. E outra vez o pranto suave mas agudo, e a pena fazendo seu corpo se contorcer.

- Mataram seu pai.

- E quem matou você, minha mãe?


Juan Rulfo, nasceu em Sayula, no Estado de Jalisco, no México (1917-1986). Escreveu apenas dois livros - os contos de "Chão em chamas" e o romance "Pedro Páramo", publicados em um só volume pela Editora Record, 2004, com tradução de Eric Nepomuceno.

08/04/2011

"Eu não sou comida pra levar tempero..."


Eu tenho um calo que parece gente,

quando chega o tempo frio

ele faz o tempo quente.

Mas esse calo só falta falar,

ele advinha até quando o tempo vai mudar...

Já me ensinaram

pra arrancar com alicate,

pra botar tomate e pimenta-de-cheiro!

- Tenha paciência, dona Margarida,

eu não sou comida pra levar tempero!

Ai não me pise no calo,

quanto mais eu falo

mais você me pisa

não encosta nesse calo,

estou lhe avisando,

eu acabo rasgando a sua camisa

- Ora, deixe de bobagem,

mude de conversa,

não me rasgue a camisa

que eu só tenho essa!

Quem sofre de calo não enfrenta a lua,

deixa os pés em casa

quando vai pra rua...!


"Um calo de estimação", de Zé da Zilda e José Thadeu - Grupo Semente

06/04/2011

O que você acha disso?


Mesmo que os anos de tua vida fossem três mil ou dez vezes três mil, lembra-te de que ninguém perde outra vida a não ser a que vive agora, nem vive outra a não ser aquela que perde. O termo mais longo e o mais breve são, portanto iguais. O presente é de todos; morrer é perder o presente, que é um lapso brevíssimo. Ninguém perde o passado nem o futuro, pois ninguém pode ser privado do que não tem. Lembra-te de que todas as coisas giram e tornam a girar pelas mesmas órbitas, e que para o espectador dá no mesmo vê-las um século, ou dois, ou infinitamente.


"Reflexões", de Marco Aurélio, imperador romano (121-180)

04/04/2011

Aleksandr Púchkin

"Naufrágio" de William Turner
Olhos abertos - vagueia o poeta,

mas à sua frente ninguém vê;

de repente alguém o chama

e interrompe sua jornada:

Diga, por que sem rumo vagas

e, quando às alturas chegas,

logo baixas o olhar a prumo

e novamente ao chão te lanças?

Confuso, vês o mundo em ordem,

sentes uma dor que, estéril, arde.

A todo instante, objetos inúteis

te enganam e te atraem.

O gênio sempre busca o céu

e o poeta de verdade

deve escolher temas sublimes

para cantar a realidade.


- Para que no monte o vento corre,

revolve as folhas e varre o pó

se inquieto n'água o navio dorme

à espera de um sopro, só?

Por que, pesada, a águia salta

volteia além da torre alta

e pousa num tronco partido?

Pergunta a ela seu motivo.

Por que a jovem ama Otelo

como ama a lua a noite escura?

Porque não há forma segura

de guiar o vento, águia e donzela.

O poeta, como Aquilon

escolhe o tema, a forma e o tom.

Como a águia, voa longe

e não pede permissão

como Desdêmona, elege

o rumo do seu coração.


Extraído do conto "Noites egípcias", de Aleksandr Sergeievitch Púchkin

(1799-1857)

03/04/2011

Documentário: O dia que durou 21 anos!


Série de 3 episódios revela imagens e depoimentos históricos sobre o Golpe de 64.

Robert Bentley, assistente do embaixador Lincoln Gordon, dá depoimento exclusivo.


Os que viveram a ditadura militar brasileira, os que passaram por ela em brancas nuvens e os que nasceram depois que ela acabou. Todos podem conhecer melhor e refletir sobre esse período, a partir da nova série “O Dia que durou 21 anos”,que a TV Brasil exibe nos dias 4, 5 e 6 de abril, às 22 h. Em clima de suspense e ação, o documentário apresenta, em três episódios de 26 minutos cada, os bastidores da participação do governo dos Estados Unidos no golpe militar de 1964 que durou até 1985 e instaurou a ditadura no Brasil. Pela primeira vez na televisão, documentos do arquivo norte-americano, classificados durante 46 anos como Top Secret, serão expostos ao público. Textos de telegramas, áudio de conversas telefônicas, depoimentos contundentes e imagens inéditas fazem parte dessa série iconográfica, narrada pelo jornalista Flávio Tavares.

O mundo vivia a Guerra Fria quando os Estados Unidos começaram a arquitetar o golpe para derrubar o governo de João Goulart. As primeiras ações surgem em 1962, pelo então presidente John Kennedy. Os fatos vão se descortinando, através de relatos de políticos, militares, historiadores, diplomatas e estudiosos dos dois países. Depois do assassinato de Kennedy, em novembro de 1963, o texano Lyndon Johnson assume o governo e mantém a estratégia de remover Jango, apelido de Goulart. O temor de que o país se alinharia ao comunismo e influenciaria outros países da América Latina, contrariando assim os interesses dos Estados Unidos, reforçaram os movimentos pró-golpe. A série mostra como os Estados Unidos agiram para planejar e criar as condições para o golpe da madrugada de 31 de março. E, depois, para sustentar e reconhecer o regime militar do governo do marechal Humberto Castelo Branco. Envergando uma roupa civil, ele assume o poder em 15 de abril. Castelo era chefe do Estado Maior do Exército de Jango. O governo norte-americano estava preparado para intervir militarmente, mas não foi necessário, como ressaltam historiadores e militares. O general Ivan Cavalcanti Proença, oficial da guarda presidencial, resume: “Lamento que foi um golpe fácil demais. Ninguém assumiu o comando revolucionário”. Do Brasil, duas autoridades americanas foram peças-chaves para bloquear as ações de Goulart e apoiar Castelo Branco: o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon; e o general Vernon Walters, adido militar e que já conhecia Castelo Branco. As cartas e o áudio dos diálogos de Gordon com o primeiro escalão do governo americano são expostas. Entre os interlocutores, o presidente Lyndon Johnson, Dean Rusk (secretário de Estado), Robert McNamara (Defesa). Além de conversas telefônicas de Johnson com George Reedy Dean Rusk; Thomas Mann (Subsecretário de Estado para Assuntos Interamericanos) e George Bundy, assessor de segurança nacional da Casa Branca, entre outros. Foi uma das mais longas ditaduras da América Latina. O general Newton Cruz, que foi chefe da Agência Central do Serviço Nacional de Informações (SNI) e ex-comandante militar do Planalto, conclui: “A revolução era para arrumar a casa. Ninguém passa 20 anos para arrumar uma Casa”.

Em 1967, quem assume o Planalto é o general Costa e Silva, então ministro da Guerra de Castelo. Da linha dura, seu governo consolida a repressão. As conseqüências deste período da ditadura, seus meandros políticos e ideológicos estarão na tela. Mortes, torturas, assassinatos, violação de direitos democráticos e prisões arbitrárias fazem parte desse período dramático da história. O jornalista Flávio Tavares, participou da luta armada, foi preso, torturado e exilado político. Através da série, dirigida por seu filho Camilo Tavares, ele explora suas vivências e lembranças. E mais: abre uma nova oportunidade de reflexão sobre o passado. O Dia que durou 21 anos é uma coprodução da TV Brasil com a Pequi Filmes, com direção de Camilo Tavares. Roteiro e entrevistas de Flávio e Camilo. Extraído de:


02/04/2011

Quatro microcontos

Arthemisia Gentileschi
Assédio sexual


Eu vou estar

denunciando o senhor

ainda hoje!

Sérgio Móia


Criação


No sétimo dia, Deus descansou.

Quando acordou, já era tarde...!

Tatiana Blum


A vida

no jogo das aparências


Num suspiro,

vislumbra dois vazios:

começo e fim.

Roniwalter Jatobá


Dia zero


Disse o Homem: haja Deus!

E houve Deus.

Whisner Fraga

01/04/2011

"Ditabranda" ou ditadura?

Em um editorial publicado no dia 17 de fevereiro de 2009, o jornal Folha de S. Paulo utilizou a expressão “ditabranda” para se referir à ditadura que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Na opinião do jornal, que apoiou o golpe militar de 1964 que derrubou o governo constitucional de João Goulart, a ditadura brasileira teria sido “mais branda” e “menos violenta” que outros regimes similares na América Latina. Como já se sabe, a Folha não foi original na escolha do termo. Em setembro de 1983, o general Augusto Pinochet, em resposta às críticas dirigidas à ditadura militar chilena, afirmou: “Esta nunca foi uma ditadura, senhores, é uma dictablanda”. Mas o tema central aqui não diz respeito à originalidade. O uso do termo pelo jornal envolve uma falácia nada inocente. Uma falácia que revela muita coisa sobre as causas e consequências do golpe militar de 1964 e sobre o momento vivido pela América Latina. É importante lembrar em que contexto o termo foi utilizado pela Folha. Intitulado “Limites a Chávez”, o editorial criticava o que considerava ser um “endurecimento do governo de Hugo Chávez na Venezuela”. A escolha da ditadura brasileira para fazer a comparação com o governo de Chávez revela, por um lado, a escassa inteligência do editorialista. Para o ponto que ele queria sustentar, tal comparação não era necessária e muito menos adequada. Tanto é que pouca gente lembra que o editorial era dirigido contra Chávez, mas todo mundo lembra da “ditabranda”. A falta de inteligência, neste caso, parece andar de mãos dadas com uma falsa consciência culpada que tenta esconder e/ou justificar pecados do passado. Para a Folha, a ditadura brasileira foi uma “ditabranda” porque teria preservado “formas controladas de disputa política e acesso à Justiça”, o que não estaria ocorrendo na Venezuela. Mas essa falta de inteligência talvez seja apenas uma cortina de fumaça. O editorial não menciona quais seriam as “formas controladas de disputa política e acesso à Justiça” da ditadura militar brasileira, mas considera-as mais democráticas que o governo Chávez que, em uma década, realizou 15 eleições no país, incluindo aí um referendo revogatório que poderia ter custado o mandato ao presidente venezuelano. Ao fazer essa comparação e a escolha pela ditadura brasileira, a Folha está apenas atualizando as razões pelas quais apoiou, junto com a imensa maioria da imprensa brasileira, o golpe militar contra o governo constitucional de João Goulart. Está dizendo, entre outras coisas, que, caso um determinado governo implementar um certo tipo de políticas, justifica-se interromper a democracia e adotar “formas controladas de disputa política e acesso à Justiça”. A escolha do termo “ditabranda”, portanto, não é acidental e tampouco um descuido. Trata-se de uma profissão de fé ideológica. Há uma cortina de véus que tentam esconder o caráter intencional dessa escolha. Um desses véus apresenta-se sob a forma de uma falácia, a que afirma que a nossa ditadura não teria sido tão violenta quanto outras na América Latina. O núcleo duro dessa falácia consiste em dissociar a ditadura brasileira das ditaduras em outros países do continente e do contexto histórico da época, como se elas não mantivessem relação entre si, como se não integrassem um mesmo golpe desferido contra a democracia em toda a região. O golpe militar de 1964 e a ditadura militar brasileira alimentaram política e materialmente uma série de outras ditaduras na América Latina. As democracias chilena e uruguaia caíram em 1973. A argentina em 1976. Os golpes foram se sucedendo na região, com o apoio político e logístico dos EUA e do Brasil. Documentos sobre a Operação Condor fornecem vastas evidências dessa relação. Recordando. A Operação Condor é o nome dado à ação coordenada dos serviços de inteligência das ditaduras militares na América do Sul, iniciada em 1975, com o objetivo de prender, torturar e matar militantes de esquerda no Brasil, Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e Bolívia. O pretexto era o argumento clássico da Guerra Fria: "deter o avanço do comunismo internacional". Auxiliados técnica, política e financeiramente por oficiais do Exército dos Estados Unidos, os militares sul-americanos passaram a agir de forma integrada, trocando informações sobre opositores considerados perigosos e executando ações de prisão e/ou extermínio. A operação deixou cerca de 30 mil mortos e desaparecidos na Argentina, entre 3 mil e 7 mil no Chile e mais de 200 no Uruguai, além de outros milhares de prisioneiros e torturados em todo o continente. Na contabilidade macabra de mortos e desaparecidos, o Brasil registrou um número menor de vítimas durante a ditadura militar, comparado com o que aconteceu nos outros países da região. No entanto, documento secretos divulgados recentemente no Paraguai e nos EUA mostraram que os militares brasileiros tiveram participação ativa na organização da repressão em outros países, como, por exemplo, na montagem do serviço secreto chileno, a Dina. Esses documentos mostram que oficiais do hoje extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) ministraram cursos de técnicas de interrogatório e tortura para militares chilenos. Em uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo (30/12/2007), o general Agnaldo Del Nero Augusto admitiu que o Exército brasileiro prendeu militantes montoneros e de outras organizações de esquerda latino-americanas e os entregou aos militares argentinos. “A gente não matava. Prendia e entregava. Não há crime nisso”, justificou na época o general. Humildade dele. Além de prender e entregar, os militares brasileiros também torturavam e treinavam oficiais de outros países a torturar. Em um dos documentos divulgados no Paraguai, um militar brasileiro diz a Pinochet para enviar pessoas para se formarem em repressão no Brasil, em um centro de tortura localizado em Manaus. Durante a ditadura, o Brasil sustentou política e materialmente governos que torturaram e assassinaram milhares de pessoas. Esconder essa conexão é fundamental para a Folha afirmar a suposta existência de uma “ditabranda” no Brasil. A ditadura brasileira não teve nada de branda. Ao contrário, ela foi um elemento articulador, política e logisticamente, de outros regimes autoritários alinhados com os EUA durante a guerra fria. O editorial da Folha faz eco às palavras do general Del Nero: “a gente só apoiava e financiava a ditadura; não há crime nisso”. Não é coincidência, pois, que o mesmo jornal faça oposição ferrenha aos governos latino-americanos que, a partir do início dos anos 2000, levaram o continente para outros rumos. Governos eleitos no Brasil, na Venezuela, na Bolívia, na Argentina, no Paraguai e no Uruguai passam a ser alvos de uma sistemática oposição midiática que, muitas vezes, substitui a própria oposição partidária. A Folha acha a ditadura branda porque, no fundo, subordina a continuidade e o avanço da democracia a seus interesses particulares e a uma agenda ideológica particular, a saber, a da sacralização do lucro e do mercado privado. Uma grande parcela do empresariado brasileiro achou o mesmo em 64 e apoiou o golpe. Querer diminuir ou relativizar a crueldade e o caráter criminoso do que aconteceu no Brasil naquele período tem um duplo objetivo: esconder e mascarar a responsabilidade pelas escolhas feitas, e lembrar que a lógica que embalou o golpe segue viva na sociedade, com um discurso remodelado, mas pronto entrar em ação, caso a democracia torne-se demasiadamente democrática. Marco Aurélio Weissheimer, jornalista - Publicado em AgenciaCartamaior