Adão e Eva, de Francis Picabia
Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e la glace est rompue; está começando a crônica.
Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.
Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhe perder o paraíso, cessou com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno, vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.
Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; ma há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não poderia comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.
Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria, mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz que outra.
Não afirmo sem prova.
Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: Que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!
Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e a fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, e daí às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não fazia àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?
Machado de Assis, (1839-1904), em As Cem Melhores Crônicas Brasileiras - Editora Objetiva
Fui lendo, me apegando à leitura e em dado momento, desconfiei: isso é coisa do "bruxo do Cosme Velho..."e não é que acertei? [risos]
ResponderExcluirFalando em covas e tumbas, minha amiga, acabei de ressuscitar de uma senhora gripe! Não foi dessa vez...
Cirandeira, mais uma vez, obrigada pelo momento tão especial que aqui passei.
Um beijo cheio de carinho!!!
Conheces mesmo! a prosa de Machado, não é amiga. Pois o texto dele é inconfundível! Adoro
ResponderExcluira prosa dele, leio e releio e não me canso, pq
é riquíssima!
Que coisa forte essa gripe que está atacando as
pessoas, os vírus e bactérias não estão pra bricadeira! Ainda bem que te safaste desta.
SAÚDE!!!
beijão
É verdade, amiga! A questão não é de rezas e orações, pois os tais "brancos do poder" passam por cima de tudo e de todos. Naquele momento, eu precisava de uma metáfora, uma alegoria, embora o fato haja acontecido com Jung. Uma alegoria de uma comunidade de pobres índios, ignorados e desprezados pela faustosa civilização. Mas que civilização, hein?
ResponderExcluirAbaixo os vírus!
Viva o nosso irônico Bruxo do Cosme Velho!
Beijos e agradeço-te os votos de saúde!
Saúde e Paz para você também!!!
MUCHAS GRACIAS POR COMPARTIRNOS TAN INTERESANTE POST.
ResponderExcluirUN ABRAZO
Obrigada, Cirandeira! Machado de Assis é leitura para qualquer tempo, e nos chega agora por suas mãos. A sua atualidade o faz grandioso e esse descaminho da crônica é aula para quem labuta com a escrita. Um mestre da literatura mundial, de origem pobre, negra. Um homem do seu tempo. O site www.dominiopublico.com.gov.br tem a sua obra completa, além de outros tantos nomes. Beijos!
ResponderExcluirEsse site é muito bom, Rita. Sempre dou uma passada por lá, já fiz até download de algumas obras.
ResponderExcluirbeijos
Ele era mesmo um gênio. Bjs.
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