"No começo, você deve escrever levado pelo vento, até sentir que está voando. A partir daí, o rítmo e a atmosfera se desenham sozinhos. É só seguir o voo. Quando você achar que chegou aonde queria chegar é que começa o verdadeiro trabalho: cortar, cortar muito".
Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.
Minha mãe me disse. E eu prometí que viria vê-lo assim que ela morresse. Apertei suas mãos em sinal de que faria isso; pois ela estava morrendo, e eu decidido a prometer tudo. "Não deixe de ir visitá-lo" recomendou ela." O nome dele é assim e assado. Tenho certeza que ele vai gostar de conhecer você." Então não tive outro jeito a não ser dizer a ela que faria isso, e de tanto dizer continuei dizendo mesmo depois que minhas mãos tiveram trabalho para se safarem de suas mãos mortas.
Antes ainda, ela tinha me dito:
- Não peça nada a ele. Exige o que é nosso. O que ele tinha de ter me dado e não me deu nunca... O esquecimento em que nos deixou, filho, você deve cobrar caro.
- Vou fazer isso, mãe.
Mas não pensei em cumprir minha promessa. Até que agora comecei a me encher de sonhos, e de soltar as ilusões. E assim foi se formando em mim um mundo ao redor da esperança que era aquele senhor chamado Pedro Páramo, o marido da minha mãe. Por isso vim a Comala.
*****
Sentí o retrato de minha mãe guardado no bolso da camisa, esquentando meu coração, como se ela também suasse. Era um retrato velho, carcomido nas beiradas; mas foi o único que conecí. Eu havia encontrado o retrato no armário da cozinha, dentro de uma caçarola cheia de ervas: folhas de capim-limão, flores de Castela, ramos de arruda. Desde então guardei o retrato. Minha mãe sempre foi inimiga de deixar-se fotografar. Dizia que os retratos eram coisa de bruxaria. E pareciam ser; porque o dela estava cheio de furos como de agulha, e na direção do coração tinha um bem grande onde podia muito bem caber o dedo médio.
*****
O vento nos fazia rir; juntava o olhar de nossos olhos, enquanto a linha corria entre nossos dedos atrás do vento, até se romper com um leve rangido como se tivesse sido cortado pelas asas de algum pássaro.
{..........} Então ouviu o pranto. Aquilo o despertou um pranto suave, delgado, que talvez por ser delgado tenha passado pela teia do sono, chegando ao lugar onde os sobressaltos se aninham. (.............) Pela porta via-se o amanhecer no céu. Não havia estrelas. Só um céu chumbo, cinzento, ainda não clareado pela luminosidade do sol. Uma luz parda, como se o dia não fosse começar, mas como se apenas estivesse chegando o princípio da noite.
Lá fora, no pátio, os passos, como de gente que ronda. Ruídos calados. E aqui, aquela mulher, de pé no umbral; seu corpo impedindo a chegada do dia; deixando aparecer, através dos seus braços, fiapos de céu, e debaixo de seus pés réstias de luz; uma luz borrifada como se o solo debaixo dela estivesse inundado de lágrimas. E depois o soluço. E outra vez o pranto suave mas agudo, e a pena fazendo seu corpo se contorcer.
- Mataram seu pai.
- E quem matou você, minha mãe?
Juan Rulfo, nasceu em Sayula, no Estado de Jalisco, no México (1917-1986). Escreveu apenas dois livros - os contos de "Chão em chamas" e o romance "Pedro Páramo", publicados em um só volume pela Editora Record, 2004, com tradução de Eric Nepomuceno.
Uma síntese da beleza e das contradições dos sentimentos humanos. Bela narrativa. E as fotos nos lançam para outras ligações do afeto, outros povos com suas idiossincrasias, seus ais próprios e nós aqui com os nossos. Um beijo, Cirandeira! Coragem!
ResponderExcluirEu até que venho tentando, Rita...mas HAJA CORAGEN!!! Como diz a cañção, "é preciso ter força, é preciso ter gana, sempre", misturar a dor com a alegria não é tão fácil assim...!
ResponderExcluirbeijo
Que delícia reler estes trechinhos aqui, Cirandeira.
ResponderExcluirAmanhã bem cedinho (lá pelo meio-dia) vou fazer escavações nas minhas estantes atrás do meu velho exemplar de Pedro Páramo, que li há uns trinta anos.
Beijos
Cirandeira,
ResponderExcluirnem tomei o primeiro cafezinho no seu blog e já vou lhe fazer uma confidência (estou certo que posso contar com a sua discrição, no sentido de que minhas palavras não cheguem aos ouvidos de fãs fervorosos de Garcia Marques):
acho Pedro Páramo o melhor romance do chamado realismo fantástico latino-americano.
abraço
Pois é Tuca, esse é um livro que podemos ler
ResponderExcluirvárias vezes, e sempre fazemos descobertas. Gosto muito. E por falar em "delícia", a tua presença por aqui é também muito boa!!!
um beijão
Wilden, é um prazer recebê-lo por aqui, espero que passe a fazer parte dos que por aqui têm
ResponderExcluirtomado vários cafezinhos. Também estou de acordo contigo: Pedro Páramo é mesmo, na minha
modesta opinião, o melhor romance latino-americano do realismo fantástico. O próprio
Garcia Marques chegou a dizer que bebeu da sua fonte e que ficou tão impactado que o leu duas vezes numa só noite!
grande abraço