DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

11/04/2011

O nascimento da crônica

Adão e Eva, de Francis Picabia
Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e la glace est rompue; está começando a crônica.

Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.

Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhe perder o paraíso, cessou com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno, vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; ma há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não poderia comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria, mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz que outra.

Não afirmo sem prova.

Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: Que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!

Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e a fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, e daí às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não fazia àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?


Machado de Assis, (1839-1904), em As Cem Melhores Crônicas Brasileiras - Editora Objetiva

7 comentários:

  1. Fui lendo, me apegando à leitura e em dado momento, desconfiei: isso é coisa do "bruxo do Cosme Velho..."e não é que acertei? [risos]
    Falando em covas e tumbas, minha amiga, acabei de ressuscitar de uma senhora gripe! Não foi dessa vez...
    Cirandeira, mais uma vez, obrigada pelo momento tão especial que aqui passei.
    Um beijo cheio de carinho!!!

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  2. Conheces mesmo! a prosa de Machado, não é amiga. Pois o texto dele é inconfundível! Adoro
    a prosa dele, leio e releio e não me canso, pq
    é riquíssima!
    Que coisa forte essa gripe que está atacando as
    pessoas, os vírus e bactérias não estão pra bricadeira! Ainda bem que te safaste desta.
    SAÚDE!!!

    beijão

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  3. É verdade, amiga! A questão não é de rezas e orações, pois os tais "brancos do poder" passam por cima de tudo e de todos. Naquele momento, eu precisava de uma metáfora, uma alegoria, embora o fato haja acontecido com Jung. Uma alegoria de uma comunidade de pobres índios, ignorados e desprezados pela faustosa civilização. Mas que civilização, hein?
    Abaixo os vírus!
    Viva o nosso irônico Bruxo do Cosme Velho!
    Beijos e agradeço-te os votos de saúde!
    Saúde e Paz para você também!!!

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  4. MUCHAS GRACIAS POR COMPARTIRNOS TAN INTERESANTE POST.
    UN ABRAZO

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  5. Obrigada, Cirandeira! Machado de Assis é leitura para qualquer tempo, e nos chega agora por suas mãos. A sua atualidade o faz grandioso e esse descaminho da crônica é aula para quem labuta com a escrita. Um mestre da literatura mundial, de origem pobre, negra. Um homem do seu tempo. O site www.dominiopublico.com.gov.br tem a sua obra completa, além de outros tantos nomes. Beijos!

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  6. Esse site é muito bom, Rita. Sempre dou uma passada por lá, já fiz até download de algumas obras.

    beijos

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