DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

23/04/2011

Para que serve a arte?

Kurt Schwitters



Ao descrever sua cidade ideal, Platão pede que os poetas sejam excluídos, porque ao invés de suscitar a emoção, deveriam fortalecer a razão. Jean-Jacques Rousseau, teórico do pré-revolucionário "Contrato Social, aprova em sua "Carta a d'Alembert sobre os espetáculos", a proibição do teatro em Genève e recomenda o desaparecimento dessa arte corruptora "que excita as almas pérfidas". Trata-se, nos dois casos, de subordinar o papel da arte à sua utilidade, política ou moral. Nos dias de hoje essas propostas pareceriam, sem dúvida nenhuma extremamente reacionárias: quem poderia colocar em questão a autonomia da arte? Como aceitar que outros critérios além dos artísticos fundamentem o valor de uma obra? Julgar a arte em função de sua mensagem, de suas vertentes sociais, seria, não apenas correr o risco de privá-la de sua liberdade essencial, mas desnaturalizá-la: a arte não tem definitivamente, de prestar contas, senão a si mesma.

O debate parece fechado, mas não é: além da censura esporadicamente reclamada para atender à crenças, aos bons costumes, etc., o questionamento sobre o papel da arte se dilui entre as demandas feitas pelas instiuições "culturais", para justificar principalmente suas subvenções no passado pela sua contribuição à emancipação democrática, e, atualmente, por sua atuação no "vínculo social", seja lá o que se entenda por isso. Posição "elitista" ou posição "populista"? Arte pela arte, ou arte para o outro?

Seriam essas as únicas escolhas possíveis. Entretanto, não é certo que esta evidência binária não reconstitua a construção histórica do afrontamento ideológico, de lógica incontestável.

A controvérsia criada em torno da obra do pintor Gustave Courbet, que viu Émile Zola opor-se à obra (póstuma) de Pierre-Joseph Proudhon é bastante esclarecedora. Courbet pediu a Proudhon para escrever o texto de um de seus catálogos de exposição. Courbet foi então vítima de acirradas críticas sob a alegação de haver vulgarizado a arte: " muito realista", " arte materialista", segundo Louis Aragon. Proudhon define o que são a arte e o artista em sua essência. Elimina a oposição entre realismo e idealismo, afirmando ser impossível separar o real do ideal, o objeto do olhar que lhe dá sentido. E afirma que o artista "é chamado a contribuir para a criação de um mundo social, oferecendo uma representação idealista da natureza e do homem, em vista do aperfeiçoamento físico, intelectual e moral da humanidade, de sua justificação por si mesma e finalmente de sua glorificação." É em nome do socialismo revolucionário que ele pode afirmar serenamente que a arte pela arte não é nada. A beleza sonhada pelos artistas tem por missão embelezar o homem, e o talento nunca é próprio de um indivíduo, mas "o produto da inteligência universal e de uma ciência geral acumulada por uma multiplicidade de mestres, e de um certo número de indústrias inferiores." E o artista, se possui qualidades diferentes, não é em nada superior ao operário, diz ele. Evidentemente é emocionante.

A réplica de Zola é arrogante, chocante, e sem dúvida mais de acordo com aquela época: "Nosso ideal são nossos amores e nossas emoções", são a originalidade, a livre expressão de uma personalidade que importa, e não sua utilidade. Théophile Gautier já havia lembrado no prefácio de "Mademoiselle Maupin", que não existe nada verdadeiramente mais belo do que aquilo que não serve para nada - o lugar mais útil em uma casa, são as latrinas..."

Por fim, restaria definir em que consiste a originalidade de uma virtude artística. Zola a esboça, destacando que a pintura não se resume em seu objeto. E é exatamente o individualismo que ele saúda naquele final do século XIX, quando desabrochavam o capitalismo, os valores burgueses e o crescimento das massas. O que ele quereria dizer quando declarou que o artista vai "vivre tout haut"? O direito flamejante a singularidade que legitimaria a arte contra o igualitarismo, ou a secreta utilidade da cristalização de uma vida, tornando sensíveis as tristezas e as grandezas possíveis? Será que existe um antagonismo absoluto, ou a própria obra não pode ultrapassar esta contradição, quaisquer que sejam as afirmações de seu autor? Como dizia Charles Baudelaire, toda estética é sempre uma moral e uma política - visão do mundo e hierarquia de valores...



Evelyne Pieiller, jornalista, escritora e dramaturga francesa

4 comentários:

  1. Uma longa e antiga discussão que acaba sempre ficando em aberto, naturalmente.

    Bem, mas Platão não pretende banir incondicionalmente todos os poetas, no final do Capítulo X, ele admite como bem-vindos os poetas que se dedicarem a entoar hinos às leis, aqueles que estiverem conforme a razão e a cidade, claro.

    De certa forma, a visão de Proudhon se aproxima disso, embora se baseie na noção de contribuição voluntária por parte do artista, noção devedora de uma crença no progresso e num um evolucionismo não individualista na formação do artista, socializado como herdeiro de conquistas passadas.

    Estranho que a autora diga que a posição de Zola era mais conforme à época, pois indubitavelmente esse feitio do artista individualista é o que se consagra no século XX, a despeito do surgimento de uma arte engajada e de todas as adesões aos partidos comunistas. Na verdade, os polos dessa ambivalência parecem se alternar historicamente, pois já no neo-classicismo do final do Séc. XVIII, já imperava a idéia de uma arte de responsabilidade moral, edificante, via Revolução Francesa.

    Agora, há um erro no trecho que cita Zola, à altura em que se menciona Gautier: este afirmava só haver beleza no que é inútil, livre da necessidade, que todo útil é feio, daí a menção às latrinas. Mas o texto menciona "NÃO haver NADA verdadeiramente belo naquilo que não serve para nada".

    Particularmente, acho que a arte quando surge é uma des-função em relação ao mundo da praxis e até mesmo da ética. É uma pulsão para a qual se inventam num segundo instante, funções aparentes, necessidades, finalidades. E segue sendo feita apesar de toda a discussão. Para o artista a necessidade é criar, às vezes até sem saber para que. E quer a ordem das coisas que o quer que ele crie acabe sendo apropriado ordenado, classificado e utilizado de diversas formas. De modo que a questão não parece ser para que serve a arte, mas como a sociedade ou a cultura 'se serve' da arte.

    Nossa fui longe dessa vez, não? Acho que nem vou reler pra ver se falei alguma besteira...

    Beijo.

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  2. Marcantonio, você nunca fala "alguma besteira", muito ao contrário, seus comentários
    são sempre enriquecedores!
    O que Platão disse no cap.X apenas reafirma sua posição, qual seja, que os poetas não estimulem a emoção, que fortaleçam a razão, como se uma estivesse desvinculada da outra; o
    que Zola já previa era o aparecimento do individualismo subjacente ao capitalismo que já vinha se pronunciando naquela época.
    Quanto a frase de Gautier, tens toda a razão, o lapso foi meu, e já fiz a devida correção.
    Acredito que a autora, quando fez a pergunta "Para que serve a arte?", referia-se
    à serventia dela para a sociedade, não?
    Infelizmente não podemos aprofundar a questão
    por aqui. Seria necessária uma continuidade na conversa, coisa que não costuma acontecer entre blogueiros, salvo raras exceções. Mas aqui e acolá sou tentada a colocar certos questionamentos, mesmo que ninguém faça qualquer comentário...Fica no ar a polêmica...!

    um beijo

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  3. voltei querida! depois de crises internéticas e mil migrações... havia um tempão não entrava aqui. entrei e lembrei de como gosava de ler seus achados...
    bj,
    pati
    (agora definitivamente nesse endereço!) :)

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  4. Que bom que voltaste, pati, até andei tentando encontrar-te, mas não te achava! Obrigada, seja muito bem-vinda!

    beijo

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