Borges, de Carlinhos Muller
Sobre a metáfora
Osvaldo Ferrari - pelo fato de o sr. divergir da visão que outros autores têm dela, gostaria de saber qual é sua ideia sobre a metáfora na literatura.
Sim, eu comecei, digamos, professando o culto à metáfora que Leopoldo Lugones tinha nos ensinado. Que curioso, toda essa geração que se chamou ultraísta falou contra Lugones e, no entanto, Lugones estava sempre presente para nós.(...) Todos nós professávamos essa estética, a estética da metáfora. Agora, no prólogo de "Lunário sentimental" Lugones afirma que o idioma é feito de metáforas, uma vez que toda palavra abstrata é uma metáfora, começando pela própria palavra "metáfora", que, se não me engano, significa translação, em grego.
Bom, e paralelamente, Emerson disse que a linguagem era poesia fóssil, mas cabe observar que, para nos entendermos, convém esquecer a etimologia das palavras. Ortega y Gasset disse que, para entender algo, devíamos entender a etimologia, e eu diria, na verdade, que para nos entendermos convém esquecer a etimologia das palavras. Um exemplo disso seria a palavra "estilo"; o estilo era uma espécie de lâmina com que escreviam os antigos, acho que na cera. Mas se agora eu falo de estilo barroco, não é conveniente passar na lâmina, ou que barroco é um dos nomes do silogismo, porque se eu penso uma lâmina comparável a um silogismo, evidentemente me afasto do conceito de estilo.
O. F. - Agora, no caso da etimologia latina da palavra metáfora, o senhor deve lembrar: meta- fero (além da meta). Isso é significativo porque, como observa Murena, levar algo para além da meta implicaria que algo está sendo levado para além do propósito da pessoa que tentou fazê-lo.
Nesse caso seria um acerto, pois eu penso que se o que escrevemos expressa exatamente o que queremos, isso perde valor, convém ir além. E é isso que acontece com todo livro antigo: o lemos para mais além da sua intenção. E a literatura consiste não em escrever exatamente o que nos propomos, mas em escrever misteriosa e profeticamente alguma coisa, para além do propósito circunstancial.
O. F. - No caso da metáfora, inevitavelmente, lembramos de Platão. Em "O banquete", Alcebíades diz: "Farei o elogio de Sócrates mediante comparações, porque a finalidade da comparação é a verdade."
Bom, concordo absolutamente com Alcebíades. Além do mais, não podemos nos expressar de outra forma, e por outro lado, o que se diz indiretamente possui mais força do que o que se diz diretamente. Não sei se já falamos alguma vez disso, mas se eu digo "fulano morreu", estou dizendo algo concreto, mas se utilizo uma metáfora bíblica e digo " fulano dorme com seus ancestrais", é mais eficaz. Além disso, aí se indica de forma indireta que todos os homens morrem e voltam com seus ancestrais, ou, como se diz em inglês, que é menos belo, "join the majority", fulano se junta à maioria. E como há mais mortos que vivos, isso quer dizer que morreu, já que os que vivemos somos uma minoria e uma minoria provisória.
(...)
O. F. - No plano literário, o senhor afirmou que talvez bastasse um único verso sem metáfora para refutar a teoria de que a metáfora é um elemento essencial.
Sim, e sem dúvida já falei da poesia japonesa, que ignora a metáfora, e talvez seja fácil encontrar exemplos de versos sem metáfora, salvo se pensarmos que toda palavra é uma metáfora, mas eu penso que não, digamos, se ouvimos ou pronunciamos a frase "via láctea", é melhor não pensarmos num caminho de leite, eu acho. Mauthner comenta que os chineses chamam a via láctea de "ruído de prata", e diz que nos parece poético, e sem dúvida, um chinês deve achar poético que se fale de via láctea, do caminho de leite para designar galáxia. Galáxia é via láctea em grego.
O. F. - Creio que o senhor já disse que, na Grécia, Aristóteles funda a metáfora sobre as coisas e não sobre a linguagem.
Acho que ele diz que uma pessoa que percebe afinidades pode forjar sua própria metáfora, quem percebe afinidades que não se notam imediatamente. E a metáfora consistiria em expressar os vínculos secretos entre as coisas.
(........)
O. F. - Mas é curioso que o senhor, apesar de sua condição de poeta, que parece vinculá-lo naturalmente à metáfora, não tenha concordado com Lugones ou com o ultraísmo em sua valorização...
Mas eu não sei se Lugones foi sempre fiel a essa ideia. Lugones sabia que a cadência, que a música da linguagem é muito importante, deve ter sabido disso. Não sei se já citei os versos de Lugones que dizem:
O jardim com seus íntimos retiros
dará a teu alado sonho fácil jaula.
Bom, isso poderia ser reduzido a uma espécie de equação dizendo: "O sonho é um pássaro cuja jaula é o jardim", mas, dito dessa forma a poesia se evapora.
O. F. - Se dissolve...
Desaparece, de modo que aí, ainda que haja uma metáfora, e uma metáfora talvez nova, embora não muito interessante, sentimos imediatamente que a poesia radica na cadência. E, sobretudo, "dará a teu alado sonho fácil jaula" age imediatamente, sentimos isso como poesia. E depois podemos justificar isso logicamente, dizendo que o sonho é uma ave, e que a jaula do sonho é o jardim, mas justificá-la dessa forma é quase destruí-la de fato.
O. F. - Sim, essa justificativa é alheia à poesia.
É alheia à poesia... No geral, penso que sentimos a beleza de uma frase, e depois, se quisermos, podemos justificá-la ou não. Mas, ao mesmo tempo, é necessário sentirmos que essa frase não é arbitrária.
O. F. - Que de algum modo a justificativa está implícita.
Sim, de algum modo, embora não o saibamos.
Extraído de "Sobre a amizade e outros diálogos" - Editora Hedra Ltda.
Sobre a metáfora
Osvaldo Ferrari - pelo fato de o sr. divergir da visão que outros autores têm dela, gostaria de saber qual é sua ideia sobre a metáfora na literatura.
Sim, eu comecei, digamos, professando o culto à metáfora que Leopoldo Lugones tinha nos ensinado. Que curioso, toda essa geração que se chamou ultraísta falou contra Lugones e, no entanto, Lugones estava sempre presente para nós.(...) Todos nós professávamos essa estética, a estética da metáfora. Agora, no prólogo de "Lunário sentimental" Lugones afirma que o idioma é feito de metáforas, uma vez que toda palavra abstrata é uma metáfora, começando pela própria palavra "metáfora", que, se não me engano, significa translação, em grego.
Bom, e paralelamente, Emerson disse que a linguagem era poesia fóssil, mas cabe observar que, para nos entendermos, convém esquecer a etimologia das palavras. Ortega y Gasset disse que, para entender algo, devíamos entender a etimologia, e eu diria, na verdade, que para nos entendermos convém esquecer a etimologia das palavras. Um exemplo disso seria a palavra "estilo"; o estilo era uma espécie de lâmina com que escreviam os antigos, acho que na cera. Mas se agora eu falo de estilo barroco, não é conveniente passar na lâmina, ou que barroco é um dos nomes do silogismo, porque se eu penso uma lâmina comparável a um silogismo, evidentemente me afasto do conceito de estilo.
O. F. - Agora, no caso da etimologia latina da palavra metáfora, o senhor deve lembrar: meta- fero (além da meta). Isso é significativo porque, como observa Murena, levar algo para além da meta implicaria que algo está sendo levado para além do propósito da pessoa que tentou fazê-lo.
Nesse caso seria um acerto, pois eu penso que se o que escrevemos expressa exatamente o que queremos, isso perde valor, convém ir além. E é isso que acontece com todo livro antigo: o lemos para mais além da sua intenção. E a literatura consiste não em escrever exatamente o que nos propomos, mas em escrever misteriosa e profeticamente alguma coisa, para além do propósito circunstancial.
O. F. - No caso da metáfora, inevitavelmente, lembramos de Platão. Em "O banquete", Alcebíades diz: "Farei o elogio de Sócrates mediante comparações, porque a finalidade da comparação é a verdade."
Bom, concordo absolutamente com Alcebíades. Além do mais, não podemos nos expressar de outra forma, e por outro lado, o que se diz indiretamente possui mais força do que o que se diz diretamente. Não sei se já falamos alguma vez disso, mas se eu digo "fulano morreu", estou dizendo algo concreto, mas se utilizo uma metáfora bíblica e digo " fulano dorme com seus ancestrais", é mais eficaz. Além disso, aí se indica de forma indireta que todos os homens morrem e voltam com seus ancestrais, ou, como se diz em inglês, que é menos belo, "join the majority", fulano se junta à maioria. E como há mais mortos que vivos, isso quer dizer que morreu, já que os que vivemos somos uma minoria e uma minoria provisória.
(...)
O. F. - No plano literário, o senhor afirmou que talvez bastasse um único verso sem metáfora para refutar a teoria de que a metáfora é um elemento essencial.
Sim, e sem dúvida já falei da poesia japonesa, que ignora a metáfora, e talvez seja fácil encontrar exemplos de versos sem metáfora, salvo se pensarmos que toda palavra é uma metáfora, mas eu penso que não, digamos, se ouvimos ou pronunciamos a frase "via láctea", é melhor não pensarmos num caminho de leite, eu acho. Mauthner comenta que os chineses chamam a via láctea de "ruído de prata", e diz que nos parece poético, e sem dúvida, um chinês deve achar poético que se fale de via láctea, do caminho de leite para designar galáxia. Galáxia é via láctea em grego.
O. F. - Creio que o senhor já disse que, na Grécia, Aristóteles funda a metáfora sobre as coisas e não sobre a linguagem.
Acho que ele diz que uma pessoa que percebe afinidades pode forjar sua própria metáfora, quem percebe afinidades que não se notam imediatamente. E a metáfora consistiria em expressar os vínculos secretos entre as coisas.
(........)
O. F. - Mas é curioso que o senhor, apesar de sua condição de poeta, que parece vinculá-lo naturalmente à metáfora, não tenha concordado com Lugones ou com o ultraísmo em sua valorização...
Mas eu não sei se Lugones foi sempre fiel a essa ideia. Lugones sabia que a cadência, que a música da linguagem é muito importante, deve ter sabido disso. Não sei se já citei os versos de Lugones que dizem:
O jardim com seus íntimos retiros
dará a teu alado sonho fácil jaula.
Bom, isso poderia ser reduzido a uma espécie de equação dizendo: "O sonho é um pássaro cuja jaula é o jardim", mas, dito dessa forma a poesia se evapora.
O. F. - Se dissolve...
Desaparece, de modo que aí, ainda que haja uma metáfora, e uma metáfora talvez nova, embora não muito interessante, sentimos imediatamente que a poesia radica na cadência. E, sobretudo, "dará a teu alado sonho fácil jaula" age imediatamente, sentimos isso como poesia. E depois podemos justificar isso logicamente, dizendo que o sonho é uma ave, e que a jaula do sonho é o jardim, mas justificá-la dessa forma é quase destruí-la de fato.
O. F. - Sim, essa justificativa é alheia à poesia.
É alheia à poesia... No geral, penso que sentimos a beleza de uma frase, e depois, se quisermos, podemos justificá-la ou não. Mas, ao mesmo tempo, é necessário sentirmos que essa frase não é arbitrária.
O. F. - Que de algum modo a justificativa está implícita.
Sim, de algum modo, embora não o saibamos.
Extraído de "Sobre a amizade e outros diálogos" - Editora Hedra Ltda.
"o sonho é uma ave, e que a jaula do sonho é o jardim..."
ResponderExcluirCi, amando ler sobre Borges, que é paixão. Queria que vc estivesse no facebook com a gente, nossa turma, porque você tem uma sensibilidade tão grande e todas as vezes que aqui venho me sinto preeenchida de sonhos.
Beijos,
Que bonito o que escreveste, Tânia!
ResponderExcluirSó mesmo sendo poeta!
Te agradeço muito o convite, mas
não consigo me animar a fazer parte do fecebook, tenho muitas
restrições quanto a essa rede social. Quem sabe um dia, quando ela não for tão invasiva das privacidades alheias...!?
um beijo
Também resisti muito, mas estou só entre poetas, entre gente que sente com as veias expostas. Ainda assim, tenho meus senões...Compreendo quem não vai. Nem sei eu até quando fico. Fazem-me ficar ainda quem me rodeia por lá. Beijos,
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