DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

05/11/2011

O Jogo da Amarelinha (trecho)

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E o velho não parecia muito ferido. Sorria vagamente, passando a mão pelo bigode. Chegou uma ambulância, içaram-no para a padiola, o motorista continuou agitando as mãos e explicando o acidente ao policial e aos curiosos.

- Mora no número 32 da rua Madame - informou um rapaz ruivo que trocara algumas frases com Oliveira e outros curiosos. - É um escritor. Conheço-o. Escreve livros.

- O pára-lamas o pegou pelas pernas, mas o carro já estava freado.

- Pegou no peito - disse o rapaz. - O velho escorregou num montão de merda.

- Foi nas pernas - disse Oliveira.

- Depende o ponto de vista - argumentou um senhor muito baixo.

- Foi no peito - insistiu o rapaz - Ví com estes meus olhos.

- Nesse caso... Não seria melhor avisar a família?

- Não tem famíia, é um escritor.

- Ah! - exclamou Oliveira.

- Tem um gato e muitos livros. Um dia subí para lhe levar um embrulho, que a porteira me pediu. Havia livros por todos os cantos. Isso tinha de lhe acontecer, os escritores são distraídos. Eu, para que um carro me pegue...

Caíam algumas gotas de chuva, que num instante dissolveram o grupo de testemunhas. Subindo a gola do casaco, Oliveira meteu o nariz pelo vento frio e começou a caminhar sem rumo. Estava certo que o velho não sofrera maiores danos, mas continuava vendo o seu rosto quase plácido, perplexo, melhor dizendo, enquanto o estendiam sobre a maca, entre frases de alento e cordiais "Allez, pépère, c'est rien, ça!" do enfermeiro, um ruivo que devia dizer o mesmo a todo o mundo, "A incomunicabilidade total", pensou Oliveira. "O pior não é tanto estarmos sós, pois isso já é conhecido e nem tem solução. Estar só, é, definitivamente, estar só dentro de um certo plano, no qual outras solidões poderiam comunicar-se conosco se a coisa fosse possível. Todavia, qualquer conflito, um acidente de rua ou uma declaração de guerra, provoca o brutal cruzamento de planos diferentes, e um homem, que talvez seja uma eminência do sânscrito ou da física quântica, se converte num pépère para o enfermeiro que o assiste num acidente. Edgar Poe metido numa ambulância, Verlaine nas mãos de um médico qualquer, Nerval e Artaud diante dos psiquiatras, Que podia saber de Keats o galeno italiano que o sangrava e o matava de fome? Se os homens como esse guardam o silêncio, com é provável, os outros triunfam cegamente, sem qualquer má intenção, é claro, sem saber que aquele operado, aquele tuberculoso, aquele acidentado despido sobre a cama se encontra duplamente só, rodeado por seres que se movem como por trás de um vidro, num outro tempo..."

Júlio Cortázar, Bruxelas-Buenos Aires (1914-1984)

2 comentários:

  1. Ci, já não posso deixar de passar por aqui, sempre certa de que algo precioso me espera: e ei-lo aqui! Obrigada pelo cuidado, carinho e sensibilidade na escolha dos posts: um primor!
    Beijos,

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  2. Tânia, te acho tão amável, tão generosa! Obrigada, querida, tenho o maior prazer em receber-te nesse "meu cantinho cultural" :)

    beijos

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