Foto: Louis Lumière, 1904
No verão de 1965, um velho senhor mergulhava, todas as manhãs, no mar de um balneário próximo a Nice, na França. Os frequentadores da praia diziam que era um homem rabugento, pois não falava com ninguém, ignorava o mundo. "Ora, deixem-no em paz!", defendia-o o dono do botequim praiano. "Durante toda a sua vida o aborreceram. Agora, ele tem o direito de descansar."
As crianças se intrigavam porque, entre um mergulho e outro, o velho tinha o hábito de desenhar, na areia molhada, riscos enigmáticos, nunca figuras. Ele passava longas horas em uma pequena cabana, erguida no rochedo. Parecia perdido e estranho. Em uma manhã escaldante, o velho senhor deu seu mergulho matinal e não foi mais visto. Nunca mais. O inquérito policial falou em "afogamento", quando seu destino se parecia mais com uma escolha. No dia seguinte, os jornais estampavam: "Morre Le Corbusier".
O triste fecho para a vida do arquiteto genial contradiz todo o seu passado de glórias. Durante seus 68 anos de vida, Le Corbusier parecia imortal. A consagração era asfixiante. Apesar dela, a chegada dos anos o transformou em um velho qualquer. Será que ele contava com isso? Uma frase de Louis-Ferdinand Céline, escrita também na velhice, sintetiza esse destino incongruente: "Não passamos de um velho poste de lembranças em uma esquina que quase ninguém mais cruza".
Para o autor autor, a velhice, é uma espécie de arma enfurecida, que fulmina, indistintamente, tudo e todos. Não faz escolhas, faz vítimas.
A triste história de Le Corbusier é só um dos capítulos de "Eles se Acreditavam Ilustres e Imortais...", coletânea de ensaios breves sobre a velhice incoerente de artistas famosos. O livro é assinado por Michel Ragon. Doloroso paradoxo: quanta glória e quanta tristeza! A velhice, nos mostra Ragon, é uma espécie de arma enfurecida, que fulmina, indistintamente, tudo e todos. Não faz escolhas, faz vítimas. Não tem moral, ou gosto, tampouco bons sentimentos - tem fome.
Lembra Ragon que um dia, já velho e doente, Charles Chaplin chegou, amparado pela filha Geraldine, a um vernissage na Suíça. "Ninguém reconhecia nem se importava com o ancião de cadeira de rodas que Carlitos se tornara", relata. Atordoado não pelo assédio, mas pelo desprezo, Chaplin teria dito a Geraldine: "Sabe, eu também era conhecido antigamente". Velhices, o autor nos lembra, são sempre inverossímeis. Desmentem, sem pudor ou delicadeza, toda a vida que a antecedeu. Nem todos os artistas conseguem, apesar da dor e fraqueza, conservar a dignidade. Muitos sucumbem - como corpos que devorassem a si mesmos.
Para montar sua coleção de retratos, Ragon partiu de um princípio: "Todos tiveram uma velhice trágica, com esquecimento que, para alguns, parecia definitivo". Quem se lembra, por exemplo, de Paul Fort, o penúltimo Príncipe dos Poetas franceses (o último teria sido Jean Cocteau)? "Do poeta popular que foi, e dos 40 volumes de suas 'Ballades Françaises', permanecem apenas alguns textos encantadores musicados por Georges Brassens", o autor rememora. Quando digitamos "Paul Fort" no Google, não chegamos a mais que três linhas.
Le Corbusier, que aos 68 anos deu um mergulho sem volta no mar de um balneário perto de Nice: esse triste fim do genial arquiteto contradiz o seu passado de glórias
Michel Ragon nos lembra do destino trágico de Alexandre Dumas, homem vigoroso e sensual, que, aos 68 anos, só se movimentava com uma poltrona rolante. "Seu sexo, do qual tanto se orgulhara, agora o envergonha", descreve. "Precisa chamar alguém para que sua incontinência não molhe as calças." Um dia, o filho tenta reanimá-lo, anunciando que Garibaldi está na Borgonha, à frente dos camisas-vermelhas, em combate contra a Prússia. No passado, os dois lutaram juntos. Mas e agora, o que ainda os aproxima? "A paixão prevalece", ainda diz Dumas, apegando-se a um fio de esperança. O filho o aniquila: "A paixão não desculpa nada".
A escritora Françoise Sagan e a atriz Brigitte Bardot foram amigas de juventude e parceiras de beleza. "Simbolizaram a libertação da mulher de todas as imposições, preconceitos, proibições", escreve Ragon. Aos 17 anos, quando publicou o célebre "Bom Dia Tristeza", Françoise parecia uma estrela que jamais deixaria de brilhar. Levou, porém, uma existência desordenada, sempre perseguida pelo fisco e pela polícia de entorpecentes. Aos 54 anos, uma velha precoce, fraturou o fêmur. "Sua derrocada é tão vertiginosa quanto seu sucesso", Ragon constata. Recolhida a um hospital geriátrico, recebe, um dia, uma visita de surpresa. É Brigitte Bardot que, sustentando ainda restos de esplendor, deseja estar com ela. Françoise, porém, se recusa a vê-la, "para não expor sua ruína".
Mas, na maior parte das vezes, a ruína não se deixa esconder. Em 1945, ano em que Adolf Hitler foi derrotado, Knut Hamsun - o mais importante narrador norueguês do século XX - tem dificuldades para escutar a notícia. "Marie, sua mulher, grita-lhe no ouvido. Ele está surdíssimo", conta Ragon. Mesmo fraco, Hamsun logo decide escrever o necrológio de Hitler. O ódio aos ingleses e aos americanos, com seu apego à modernidade que ele execrava, o levou a aderir ao nazismo. A admiração por Hitler, porém, não macula a grandeza da obra literária. "A obra tão singular de Knut Hamsun se explica ao mesmo tempo por seu autodidatismo, sua perpétua vagabundagem e pela situação singular de seu país natal", cogita Ragon.
Quando, em 1905, a Noruega recuperou a independência, Hamsun já tinha 46 anos. Quando o nazismo se expande sobre a Europa, já é um septuagenário. Suas escolhas políticas não combinam, porém, com sua grandeza literária. É internado como louco e submetido a longos interrogatórios. A velhice o põe sob suspeita. Foi, enfim, liberado - para uma decadência interminável. Só morreu em 1952, aos 93 anos. Seu estado era digno de lástima. Mais repulsivo ainda era o sentimento de exclusão. "O que fiz não foi bem compreendido", disse. "Perdi e devo assumir isso."
A glória literária não estanca a derrota do corpo e as suspeitas que recaem, em consequência, sobre o psiquismo. O filósofo René Descartes, que jamais adoecera, desprezava as drogas e os boticários. Doente, prescrevem-lhe lavagem e sangria. Recusa não só os remédios, mas a comida. Só acreditava em certa emulsão infalível, resultado do tabaco infundido no vinho. Seu médico, mesmo horrorizado, cede - mas exige que as doses sejam diluídas. Quem pode levar a sério o desejo de um velho? Em 11 de fevereiro de 1650, René Descartes morre. Carregou consigo a crença de que Cristina, a rainha da Suécia, sua aluna de filosofia, mesmo diante de sua indisfarçável decadência, se interessava por ele. "Acreditava que a rainha o amava (quer dizer, amava seu espírito) e que ela o matou." Mesmo a mais brilhante das mentes se deixa roer. A vertigem não poupa a glória.
José Castello, Rio de Janeiro, 1951 - biógrafo, cronista, romancista, crítico literário e jornalista.
No verão de 1965, um velho senhor mergulhava, todas as manhãs, no mar de um balneário próximo a Nice, na França. Os frequentadores da praia diziam que era um homem rabugento, pois não falava com ninguém, ignorava o mundo. "Ora, deixem-no em paz!", defendia-o o dono do botequim praiano. "Durante toda a sua vida o aborreceram. Agora, ele tem o direito de descansar."
As crianças se intrigavam porque, entre um mergulho e outro, o velho tinha o hábito de desenhar, na areia molhada, riscos enigmáticos, nunca figuras. Ele passava longas horas em uma pequena cabana, erguida no rochedo. Parecia perdido e estranho. Em uma manhã escaldante, o velho senhor deu seu mergulho matinal e não foi mais visto. Nunca mais. O inquérito policial falou em "afogamento", quando seu destino se parecia mais com uma escolha. No dia seguinte, os jornais estampavam: "Morre Le Corbusier".
O triste fecho para a vida do arquiteto genial contradiz todo o seu passado de glórias. Durante seus 68 anos de vida, Le Corbusier parecia imortal. A consagração era asfixiante. Apesar dela, a chegada dos anos o transformou em um velho qualquer. Será que ele contava com isso? Uma frase de Louis-Ferdinand Céline, escrita também na velhice, sintetiza esse destino incongruente: "Não passamos de um velho poste de lembranças em uma esquina que quase ninguém mais cruza".
Para o autor autor, a velhice, é uma espécie de arma enfurecida, que fulmina, indistintamente, tudo e todos. Não faz escolhas, faz vítimas.
A triste história de Le Corbusier é só um dos capítulos de "Eles se Acreditavam Ilustres e Imortais...", coletânea de ensaios breves sobre a velhice incoerente de artistas famosos. O livro é assinado por Michel Ragon. Doloroso paradoxo: quanta glória e quanta tristeza! A velhice, nos mostra Ragon, é uma espécie de arma enfurecida, que fulmina, indistintamente, tudo e todos. Não faz escolhas, faz vítimas. Não tem moral, ou gosto, tampouco bons sentimentos - tem fome.
Lembra Ragon que um dia, já velho e doente, Charles Chaplin chegou, amparado pela filha Geraldine, a um vernissage na Suíça. "Ninguém reconhecia nem se importava com o ancião de cadeira de rodas que Carlitos se tornara", relata. Atordoado não pelo assédio, mas pelo desprezo, Chaplin teria dito a Geraldine: "Sabe, eu também era conhecido antigamente". Velhices, o autor nos lembra, são sempre inverossímeis. Desmentem, sem pudor ou delicadeza, toda a vida que a antecedeu. Nem todos os artistas conseguem, apesar da dor e fraqueza, conservar a dignidade. Muitos sucumbem - como corpos que devorassem a si mesmos.
Para montar sua coleção de retratos, Ragon partiu de um princípio: "Todos tiveram uma velhice trágica, com esquecimento que, para alguns, parecia definitivo". Quem se lembra, por exemplo, de Paul Fort, o penúltimo Príncipe dos Poetas franceses (o último teria sido Jean Cocteau)? "Do poeta popular que foi, e dos 40 volumes de suas 'Ballades Françaises', permanecem apenas alguns textos encantadores musicados por Georges Brassens", o autor rememora. Quando digitamos "Paul Fort" no Google, não chegamos a mais que três linhas.
Le Corbusier, que aos 68 anos deu um mergulho sem volta no mar de um balneário perto de Nice: esse triste fim do genial arquiteto contradiz o seu passado de glórias
Michel Ragon nos lembra do destino trágico de Alexandre Dumas, homem vigoroso e sensual, que, aos 68 anos, só se movimentava com uma poltrona rolante. "Seu sexo, do qual tanto se orgulhara, agora o envergonha", descreve. "Precisa chamar alguém para que sua incontinência não molhe as calças." Um dia, o filho tenta reanimá-lo, anunciando que Garibaldi está na Borgonha, à frente dos camisas-vermelhas, em combate contra a Prússia. No passado, os dois lutaram juntos. Mas e agora, o que ainda os aproxima? "A paixão prevalece", ainda diz Dumas, apegando-se a um fio de esperança. O filho o aniquila: "A paixão não desculpa nada".
A escritora Françoise Sagan e a atriz Brigitte Bardot foram amigas de juventude e parceiras de beleza. "Simbolizaram a libertação da mulher de todas as imposições, preconceitos, proibições", escreve Ragon. Aos 17 anos, quando publicou o célebre "Bom Dia Tristeza", Françoise parecia uma estrela que jamais deixaria de brilhar. Levou, porém, uma existência desordenada, sempre perseguida pelo fisco e pela polícia de entorpecentes. Aos 54 anos, uma velha precoce, fraturou o fêmur. "Sua derrocada é tão vertiginosa quanto seu sucesso", Ragon constata. Recolhida a um hospital geriátrico, recebe, um dia, uma visita de surpresa. É Brigitte Bardot que, sustentando ainda restos de esplendor, deseja estar com ela. Françoise, porém, se recusa a vê-la, "para não expor sua ruína".
Mas, na maior parte das vezes, a ruína não se deixa esconder. Em 1945, ano em que Adolf Hitler foi derrotado, Knut Hamsun - o mais importante narrador norueguês do século XX - tem dificuldades para escutar a notícia. "Marie, sua mulher, grita-lhe no ouvido. Ele está surdíssimo", conta Ragon. Mesmo fraco, Hamsun logo decide escrever o necrológio de Hitler. O ódio aos ingleses e aos americanos, com seu apego à modernidade que ele execrava, o levou a aderir ao nazismo. A admiração por Hitler, porém, não macula a grandeza da obra literária. "A obra tão singular de Knut Hamsun se explica ao mesmo tempo por seu autodidatismo, sua perpétua vagabundagem e pela situação singular de seu país natal", cogita Ragon.
Quando, em 1905, a Noruega recuperou a independência, Hamsun já tinha 46 anos. Quando o nazismo se expande sobre a Europa, já é um septuagenário. Suas escolhas políticas não combinam, porém, com sua grandeza literária. É internado como louco e submetido a longos interrogatórios. A velhice o põe sob suspeita. Foi, enfim, liberado - para uma decadência interminável. Só morreu em 1952, aos 93 anos. Seu estado era digno de lástima. Mais repulsivo ainda era o sentimento de exclusão. "O que fiz não foi bem compreendido", disse. "Perdi e devo assumir isso."
A glória literária não estanca a derrota do corpo e as suspeitas que recaem, em consequência, sobre o psiquismo. O filósofo René Descartes, que jamais adoecera, desprezava as drogas e os boticários. Doente, prescrevem-lhe lavagem e sangria. Recusa não só os remédios, mas a comida. Só acreditava em certa emulsão infalível, resultado do tabaco infundido no vinho. Seu médico, mesmo horrorizado, cede - mas exige que as doses sejam diluídas. Quem pode levar a sério o desejo de um velho? Em 11 de fevereiro de 1650, René Descartes morre. Carregou consigo a crença de que Cristina, a rainha da Suécia, sua aluna de filosofia, mesmo diante de sua indisfarçável decadência, se interessava por ele. "Acreditava que a rainha o amava (quer dizer, amava seu espírito) e que ela o matou." Mesmo a mais brilhante das mentes se deixa roer. A vertigem não poupa a glória.
José Castello, Rio de Janeiro, 1951 - biógrafo, cronista, romancista, crítico literário e jornalista.
Lendo e pensando...
ResponderExcluirPorque ando relendo Jung, lembrei-me dele, da vida rica e da morte relativamente tranquila. Até o fim trabalhando, pensando, transformando. Acho uma visão muito negativa da velhice. Certamente que outros poderiam escolher histórias diferentes. Enfim...
Deu trsiteza ler, mas curiosidade também.Beijos,
Excelente texto. As limitações e a indiferença a que somos submetidos na velhice, acabam fazendo da finitude um santo remédio. Que as nossas velhices não nos sejam tão amargas. Bjs.
ResponderExcluirNão se trata propriamente de "uma
ResponderExcluirvisão negativa da velhice", Tânia,
mas de pessoas que na vida real passaram por isso. É claro que existem outras que tiveram a sorte
de serem poupadas, mas a verdade é
que os mais velhos não são respeita
dos como deveriam ser. Existe em
nossa sociedade ocidental o culto
e o mito da eterna juventude, como se fôssemos eternos! Não temos o
direito de envelhecer? É uma lei natural da vida, não escapa ninguém, a não ser que morra ainda jovem. Sabemos muito bem o tratamento que é dispensado aos mais velhos, que em realidade, são os nossos pais, os nossos avós!
beijos
Tomara, Terráqueo, tomara!!!
ResponderExcluirTava sentindo tua falta! Por onde tens andado, viajante?
beijos
Esse livro mencionado, o de Ragon, deve ser muito interessante. Mas ouso dizer que a capacidade de escrever, e assim abstrair idealmente, particulariza anedoticamente os problemas. Essa vivência da decadência e do esquecimento na velhice é um fardo de todo ser humano, seja o pipoqueiro da esquina ou o Chales Chaplin. E neste último não é senão mais propício à formulação de uma anedota. Porque, afinal, existe um tipo de visão gloriosa de si mesmo que prescinde de reconhecimento oficial, que comumente se apelida de auto-estima ou superconfiança e que naufraga inevitavelmente ao longo dos anos. E a grande perda não é do que se adquiriu, mas do que já se trazia, a própria vida. Aqueles entre os célebres que se supunham imortais, a salvo da decadência, deviam então ter algum tipo de cegueira estúpida não condizente, no fundo, com a sua suposta grandeza. Afinal, não consigo conceber que mesmo um artista que se veja venerado ainda aos noventa anos, não tenha dentro de si a certeza angustiante da própria decadência. Não existe velhice boa, talvez apenas menos ruim. Dentro de si mesmos, os mais idosos não comungam com o conceito (precocemente senil, aliás)e hipócrita de que vivem a melhor idade.
ResponderExcluirEnfim, creio que essa relação velhice/decadência sob o viés da fama e do vigor criativo é um falso problema na medida em que muitos viveram o esquecimento ainda jovens, como o caso mais célebre, Mozart, que foi da glória à vala comum em 27 anos. E mesmo que ele envelhecesse de forma majestática, não se sentiria muito menos traído pela vida.
Beijo.
Ps.: Talvez este comentário se alimente de uma situação particular que tenho testemunhado nos últimos anos.
É, Marcantonio, a velhice não poupa ninguém, mas independente de
ResponderExcluirser celebridade, acho que somos
educados(!?)para uma existência eterna e por isso, a sociedade rejeita, discrimina aqueles que não
são jovens. Particularmente, considero a velhice um fardo muito
pesado e difícil de carregar, não
tenho a menor pretensão de ficar para semente e carregar a bandeira
da "sabedoria". Pior do que o esquecimento é o abandono a que são submetidos os velhos!
um beijo