DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

20/12/2022

A máquina e o corpo

Delphine Chevrot 



Numa sociedade onde os mais velhos são tratados como crianças; as crianças como cachorros; e os cachorros como seres humanos, o que lhe resta, além da estupidez ou o nome que se lhe dê? A voragem da solidão atua com toda sua força criando ilhas nas entranhas do próprio ser!

A máquina desnuda o corpo e a mente de suas defesas.

30/11/2022

De Eugênio de Andrade *

 



Urgentemente


É urgente o Amor.

É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos, 

muitas espadas.

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,

e a luz impura até doer.

É urgente o Amor.

É urgente permanecer.


***


Frente a frente


Nada podeis contra o amor,

contra a cor da folhagem,

contra a carícia da espuma, 

contra a luz, nada podeis.

Podeis dar-nos a morte,

a mais vil, isso podeis

- e é tão pouco!


***


É na escura folhagem do sono

que brilha a pele molhada,

a difícil floração da língua.


* O poeta Eugênio de Andrade nasceu em Fundão(Portugal), em 1923 e faleceu em 2005. 

22/11/2022

A flor e a náusea

 



Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me. 

Devo seguir até o enjoo?

Posso, sem armas, revoltar-me?


Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.


Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase.


Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita ou recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres, mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.


Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.


Por fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.


Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.


Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.


Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) em A rosa do povo

09/11/2022

Porque...




Porque era noite e muitos não sabiam que as nuvens se acumulam assim como se dispersam. Porque era dia e todos ficaram sabendo até quando brilha o sol. Porque o além jamais chega, já que ele está sempre à frente. A busca é eterna para que o sonho permaneça.                                     Os dois viviam no cabresto, até que um dia, sem querer, querendo, a aliança que existia entre eles se rompeu. Subiram pela espiral da escada a cantar "tu és divina e graciosa, estátua majestosa". Camas separadas, colchão mole, colchão duro, canja de galinha e pirão. Ah, como é lindo o amor!?

E o silêncio dormiu à beira-mar na boca sem dentes da Noite, que "cordialmente" tentou vingar-se das perversas arbitrariedades cometidas ao arrepio da lei vigente. A boca que não falava agora grita para um silêncio ensurdecedor.

31/10/2022

Nosso tempo




Este é tempo de partido,

tempo de homens partidos.


Em vão percorremos volumes,

viajamos e nos colorimos.

                               A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.

Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.

As leis não bastam. Os lírios não nascem

da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se

na pedra.


[.....]


Esse é tempo de divisas,

tempo de gente cortada.

De mãos viajando sem braços,

obscenos gestos avulsos.

[.....]


Símbolos obscuros se multiplicam.

Guerra, verdade, flores?

Dos laboratórios platônicos mobilizados

vem um sopro que cresta as faces

e dissipa, na praia, as palavras.


[.....]


E continuamos. É tempo de muletas.

Tempo de mortos faladores

e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,

mas ainda é tempo de viver e contar.

Certas histórias não se perderam.

Conheço bem esta casa,

pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,

a sala grande conduz a quartos terríveis,

como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,...


[.....]


É tempo de meio silêncio,

de boca gelada e murmúrio,

palavra indireta, aviso

na esquina. Tempo de cinco sentidos

num só. O espião janta conosco.


[.....]


O poeta

declina de toda responsabilidade

na marcha do mundo capitalista

e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas

promete ajudar

a destruí-lo

como uma pedreira, uma floresta,

um verme.


Carlos Drummond de Andrade (31.10.1902-17.08.1987)

Em A rosa do povo, escrito entre 1943-1945.

 

28/10/2022

"Desenganos da vida humana metaforicamente" *




É a vaidade, Fábio, nesta vida,

rosa, que de manhã lisonjeada,

púrpuras mil, com ambição dourada,

airosa rompe, arrasta presumida.


É planta, que de abril favorecida,

florida galeota empavesada,

sulca ufana, navega destemida.


É nau enfim, que em breve ligeireza

com presunção de Fênix generosa,

galhardias apresta, alentos preza.


Mas, ser planta, ser rosa, nau vistosa

de que importa, se aguarda sem defesa

penha a nau, ferro, planta, tarde a rosa?


Gregório de Matos, advogado e poeta nascido em Salvador(BA), no século XVII(1636-1696), no primeiro período literário denominado barroco no Brasil. Não tinha "papas na língua", usava e abusava de metáforas e antíteses, não poupando os poderosos da época, e por isso ficou conhecido como o "Boca do inferno". Acabou sendo preso e deportado para Angola(África). Posteriormente, conseguiu sua liberdade sob a condição de nao mais voltar a residir em Salvador. Faleceu em Recife(PE).

20/10/2022

Imunidade de rebanho

 



A estupidez é sua própria recompensa.

Graças a ela o mundo faz sentido, um só, que é fácil de identificar.

E só o fácil satisfaz a quem não pensa.

Pensar dá trabalho. E dói. A ignorância é o sumo bem

dos cidadãos de bem, é a verdadeira marca dos eleitos.

Ter sucesso é não ter que saber.

Saber cansa.

Olhai as vacas do campo: não lhe faz falta a ciência,

pastam em plena bem-aventurança,

sem que nenhuma antevisão do matadouro

perturbe a santa paz da ruminança.


Paulo Henriques Britto - poeta, tradutor e professor de Literatura.

(Rio de Janeiro, 1951-     ).

15/10/2022





Uma densa nuvem de vagalumes sobrevoa os pastores da noite.                          Brasas emergem das cinzas... 

09/10/2022

Luto da Família Silva - Crônica de Rubem Braga *




Assistência foi chamada. Veio tinindo. Um homem estava morto. O cadáver foi removido para o necrotério. Na seção dos "Fatos Diversos" do Diário de Pernambuco, leio o nome do sujeito João da Silva. Morava na Rua da Alegria. Morreu de hemoptise.                                                                    João da Silva - Neste momento em que seu corpo vai baixar à vala comum, nós, seus amigos e seus irmãos, vimos lhe prestar esta homenagem. Nós somos os Joões da Silva. Nós somos os populares Joões da Silva. Moramos em várias casas e em várias cidades. Moramos principalmente na rua. Nós pertencemos, como você, à família Silva. Não é uma família ilustre: nós não temos avós na história. Muitos de nós usamos outros nomes, para disfarce. No fundo, somos os Silva. Quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços.         


                   Somos os Silva. Algumas pessoas importantes usaram e usam nosso nome. É por engano. Os Silva somos nós. Não temos a mínima importância. Trabalhamos, andamos pelas ruas e morremos. Saímos da vala comum da vida para o mesmo local da morte. Às vezes, por modéstia, não usamos nosso nome de família. Usamos o sobrenome "de Tal". A família Silva e a família "de Tal" são a mesma família. E, para falar a verdade, uma família que não pode ser considerada boa família. Até as mulheres que não são de família pertencem à família Silva.           João da Silva - Nunca nenhum de nós esqueceu seu nome. Você não possuía sangue azul. O sangue que saía de sua boca era vermelho - vermelhinho da Silva. Sangue de nossa família. Nossa família, entretanto, é que trabalha para os homens importantes. A família Crespi, a família Matarazzo, a família Guinle, a família Rocha Miranda, a família Pereira Carneiro, todas essas famílias assim são sustentadas pela nossa família. Nós auxiliamos várias famílias importantes na América do Norte, na Inglaterra, na França, no Japão. A gente de nossa família trabalha nas plantações de mate, nos pastos, nas fazendas, nas usinas, nas praias, nas fábricas, nas minas, nos balcões, na mata, nas cozinhas, em todo lugar onde se trabalha. Nossa família quebra pedra, faz telhas de barro, laça os bois, levanta os prédios, conduz os bondes, enrola o tapete do circo, enche os porões dos navios, conta o dinheiro dos Bancos, faz os jornais, serve no Exército e na Marinha. Nossa família é feito Maria Polaca: faz de tudo.                                                               Apesar disso, João da Silva, nós temos de enterrar você é mesmo na vala comum. Na vala comum da miséria. Na vala comum da glória, João da Silva. Porque nossa família um dia há de subir na política...


Rubem Braga nasceu em Cachoeiro do Itapemirim(ES) e faleceu no Rio de Janeiro em 1990. Essa crônica foi escrita em 1935. Após 87 anos continua atual ! 

04/10/2022

De Jorge Luis Borges

 




Olhar o rio que é de tempo e água,

E recordar que o tempo é outro rio.

Saber que nos perdemos como o rio

E que os rostos passam como a água.


Mas a alma em meio à ruidosa monotonia da vida,

continua a ouvir uma voz que vem nos intervalos.

Continua a chorar ao ouvir uma melodia que não havia.

Continua a ouvir a fala de um estranho que vive em nós,

e que nos visita nos sonhos.

26/09/2022

"Elevação" (trechos)


 


Feliz aquele que pode com uma asa vigorosa

ir em direção aos campos luminosos e serenos.

Aquele cujos pensamentos são como pássaros

em direção aos céus da manhã para um livre voo.

Quem planar sobre a vida, e compreender sem esforço,

a linguagem das flores e das pequenas coisas.


Charles Baudelaire (1821-1867)

16/09/2022

Numa noite de verão

 



Dois ramos de brócolis para dissimular quem está nu.

Uma mansão de sete portas fechadas a sete chaves, sem teto.

Uma imensa tela de imagens coloridas.

Um barco sem velas, encalhado em alto mar de águas escuras, numa 

tarde também escura.

Nado de cachorro para atravessar a covardia do medo:

Não verás nada igual ou semelhante!

04/09/2022

Dedo mindinho, seu vizinho...




É fino o fio que aprisiona nossas ideias; quando soltas esparramam-se sobre o papel. Os cabelos, quando soltos, despenteiam os pensamentos cheios de nós, "acostumados" a não terem suas próprias ideias. São tramas traçadas desde muito cedo, (dis)torcidas em seu nascedouro.               Fure o bolo, cate o piolho...!

"Dedo mindinho, seu vizinho, fura-bolo, cata-piolho. Cadê o bolo que estava aqui?"  As crianças estão indo para onde? O bolo emborolou, a massa está falida, o bolo é para poucos!

23/08/2022

Imaginem !

 Osvaldo Goeldi



Buscar estrelas no espaço celeste, e ver  apenas um quadro branco no quadrado do quarto. No entanto, nem todo quadro é quadrado assim como um quarto não é a quarta parte da casa, mas um enlatado debaixo de um viaduto qualquer, onde os os pássaros de aço cantam durante a noite inteira. Imaginem! Imaginem um sonho esquartejado num quarto de hora, em um quarto a céu aberto... onde as palavras, minúsculas gotículas que respingam sobre a cabeça ribombam como raios, como se estrelas cadentes fossem, deslocando-se pelo espaço cerebral. Imaginem! Palavras soltas, desgarradas, mas que aos poucos vão se juntando, aglomerando-se umas às outras; uma multidão de estrelas, digo sons, falo de pessoas amontoadas, de um grande cordão de corpos desvalidos, chumbados e boquiabertos. Onde encontrar estrelas? 

13/08/2022

Paradoxos




Azuis eram as linhas por onde passava o trem que ía da Caixa Prego a Lugar Nenhum. Até que um dia tentaram passar uma cortina de ferro sobre os trilhos, e tudo ficou na penumbra. Hoje em dia, quem passa por aquela estação vê que tudo não passou de uma ilusão de ótica: o que não parece é exatamente o que é!                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       

05/08/2022

Ai de ti, Copacabana (trechos)




Ai de ti, Copacabana, porque eu já te fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.

Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.

Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia.

Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação.

Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.

Antes de te perder eu agravarei a tua demência - ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus mrros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.

Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas jóias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!

Rio de Janeiro, 1958


Rubem Braga, Cachoeiro de Itapemirim(ES) - 1913-1990

31/07/2022

É sempre bom lembrar que...




" o tirano nunca ama e nunca é amado. A amizade é um sentimento sagrado, uma coisa santa. Só existe entre pessoas de bem. Nasce da estima mútua e se alimenta não tanto dos benefícios quanto dos bons costumes. O que dá a um amigo a certeza da amizade do outro é o conhecimento de sua integridade. Tem como garantias sua bondade natural, sua fidelidade, sua constância. Não pode haver amizade onde se encontrem a crueldade, a deslealdade, a injustiça. Quando os maus se reúnem há uma conspiração, não uma sociedade. Não se amam, mas se temem. Não são amigos, mas cúmplices. Mas, mesmo que não fosse assim, seria difícil encontrar um amor sincero num tirano, porque, estando acima de todos e não tendo companheiros, já estaria além dos limites da amizade. Esta floresce na igualdade, desenvolve-se sempre igual e nunca pode falhar. É por isso que existe, como dizem, uma espécie de boa-fé entre os ladrões no momento de repartir o butim, porque então todos são iguais e companheiros. Embora não se amem, pelo menos se temem. Não querem, com sua desunião, diminuir sua força. Mas os favoritos de um tirano nunca podem contar com ele, porque aprenderam que pode tudo, que nenhum direito nem dever o obriga, que está acostumado a não ter nenhuma lei além de sua própria vontade, e nenhum companheiro, por ser senhor de todos. Não é lamentável que, com tantos exemplos evidentes, sabendo que o perigo, está tão presente, ninguém queira aprender a lição das misérias de outros e que tantas pessoas se aproximem ainda tão naturalmente dos tiranos? "


Étienne de La Boétie, filósofo, poeta e escritor francês (1530-1563), em " Discurso da servidão voluntária". 

25/07/2022

Do esquecimento

 




Mundus vult decipi, ergo decipiatur!" ou 

"O mundo quer ser enganado, pois que o seja!"


Ai! Ai! O homem não é mais que um sopro de vento; é menos que uma mosca, pois esse inseto, pelo menos, tem certa consistência, enquanto nós não passamos de bolhas d'água. 

[...]

Onde o ouro é todo-poderoso, de que servem as leis?

Se não tem dinheiro, o pobre perde seus direitos.

O cínico, que é tão frugal e severo em público,

secretamente negocia com a verdade.

Até mesmo Têmis se vende e, em seu tribunal,

a balança pende conforme o vil metal.

[...]


O homem nada mais é que um sopro.

E a trama de seus anos é curta e frágil.

O túmulo segue nossos passos; cabe a nós,

sabiamente, usar o prazer para embelezar,

o mais que pudermos, os nossos instantes.


Petrônio ou Caius Petronius Arbiter, (c. 27-66.C.) em Satíricon. De família rica e aristocrática, Petrônio foi governador e conselheiro do imperador romano Nero. Durante o dia dormia e à noite entregava-se aos deveres e aos prazeres. " O ambiente de Petrônio é o das nossas grandes capitais, da nossa "alta sociedade".(Otto Maria Carpeaux).

14/07/2022

Pareça e desapareça




Parece que foi ontem.

Tudo parecia alguma coisa.

O dia parecia noite.

E o vinho parecia rosas.

Até parece mentira,

tudo parecia alguma coisa.

O tempo parecia pouco, e a gente parecia muito.

A dor, sobretudo,

parecia prazer.

Parecer era tudo

que as coisas pareciam fazer.

O próximo, eu mesmo.

Tão fácil ser semelhante,

quando eu tinha um espelho

pra me servir de exemplo.

Mas vide versa e vide a vida.

Nada se parece com nada.

A fita não coincide

com a tragédia encenada.

Parece que foi ontem.

O resto, as próprias coisas contem.


*****


O par que me parece


Pesa dentro de mim

o idioma que não fiz,

aquela língua sem fim

feita de ais e de aquis.

Era uma língua bonita,

música, mais que palavra,

alguma coisa de hitita,

praia do mar de Java.

Um idioma perfeito,

quase não tinha objeto.

Pronomes do caso reto,

nunca acabavam sujeitos.

Tudo era seu múltiplo,

verbo, triplo, prolixo.

Gritos eram os unidos, o resto ia pro lixo.

Dois leos em cada pardo.

Dois saltos em cada pulo,

eu que só via a metade,

silêncio, está tudo duplo.


Paulo Leminski - Curitiba(PR) - 1944-1989.

08/07/2022

Crepúsculo *





O claro acorda o escuro

O escuro aborta a luz

O espaço rompe os espaços

Farrapos afogam-se na solidão

A alma dança

E

Oscila e oscila

E

Estremece no espaço

Você!

Meus membros buscam-se

Meus membros tocam-se

Meus membros oscilam afundam afundam afogam-se

Na

Imensidão

Você!


O claro abosta o escuro

O escuro devora a luz

O espaço se afoga na solidão

A alma

Ferve

Ferrolha-se

Rara!

Meus membros

Giram

Na

Imensidão

Você"


O claro é luz!

A solidão sorve!

A imensidão escorre

Rasga

Me

Em você!

Você!


* August Stramm, poeta expressionista alemão, um dos fundadores da revista Der Sturm. Nasceu em Munster em 1874 e faleceu na guerra, em 1915.


 

02/07/2022

Pra lá e pra cá



Minhas mãos, meu cérebro, meus pensamentos, o mundo, a multidão, a solidão, e os meus pés, ardem sobre fagulhas de pedras pontiagudas, e furam e perfuram meu estômago, deixando-me em frangalhos... Há muitas pedras no caminho. Caminhar sobre pedras não é fácil, porque elas também caminham, imperceptivelmente, com a ajuda de ventos ou de águas turbulentas. Fecho os olhos em ondas curtas, médias e frequentes, mas não vislumbro sequer um peixe; decerto partiram em busca de outros mares, ou caíram em cadafalsos, ou guilhotinas: todos enforcados! Não sei ao certo por que me veio à cabeça imagens de pedras. Vez em quando, tenho a nítida sensação de que sou um minúsculo grão de areia, uma reles poeira carregada pelo vento. Nascer nas pedras, viver entre pedras, caminhar sobre pedras. .. Será que somos feitos de pedras? Sim e não: de pó, de água da chuva, de sal e sol e vento, de contradições, de sentimentos de amor e de ódio, de dor e prazer, de alegria e de tristeza. Enfim, somos seres vivos, às vezes humanos, noutras, nem tanto...!

23/06/2022

O Sobrevivente

 

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.

Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.

O último trovador morreu em 1914.

Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.


Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.

Se quer fumar um charuto aperte um botão.

Paletós abotoam-se por eletricidade.

Amor se faz pelo sem-fio.

Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O jornal que ainda falta muito para atingirmos um 

nível razoável de cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.


Os homens não melhoraram

e matam-se como percevejos.

Os percevejos heróicos renascem.

Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.

E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

03/06/2022

Tentando sonhar...

 

A ventania, Anita Malfatti




Olhei para o céu, e vi um grande livro aberto onde as letras eram estrelas formadas por pontos luminosos, que se deslocavam; as fixas constituíam os parágrafos, e as que se moviam, eram as mudanças de páginas. Esse imenso espelho celeste refletia os grandes astros da literatura universal. De repente, ouvi uma voz a perguntar-me: "- O que vais fazer com este espelho?" Um vento forte soprou em minha janela. Acordei. Preciso aprender a sonhar, a compreender melhor o canto das sereias que desafiavam a lucidez de Ulisses; a importância dos moínhos de vento de Dom Quixote, e sobretudo, continuar buscando a ilha desconhecida, da qual nos falou José Saramago.  

22/05/2022

Indagações

 Albrecht Dürer



Sentada diante de uma tela em branco tento extrair minúsculas partículas de lucidez para preencher esse vazio que vem insistindo em instalar-se em meu cérebro. Um vazio que surge quando quase tudo já transbordou, ultrapassou os limites do que é possível, porque o vazio, quando excede, enche! Nada, não sai nada; mesmo vendo, sentindo na minha própria carne, na tua, na de milhões de pessoas que habitam essa terra, a carência de alimentos, a fome, a falta de moradias, de saúde, de educação, de bem-estar, de uma vida digna. Uma mistura de sentimentos contraditórios dialogam, e ao mesmo tempo divergem dentro de mim: impotência, medo, covardia, ou hipocrisia ou comodismo? Essa aparente diversidade de sentimentos tem, paradoxalmente, me deixado sentada diante, e não à beira da indiferença. Continuarei indagando enquanto não sair deste labirinto...

16/05/2022

Um poema de Linda Pastan *

 

Estou aprendendo a abandonar o mundo

antes que ele me abandone.

Já desisti da lua

e da neve fechando minhas cortinas

contra as reivindicações do branco.

E o mundo levou

meus pais, meus amigos.

Abandonei as linhas melódicas das colinas,

passando para uma paisagem plana, desafinada.

E todas as noites eu desisto do meu corpo,

membro por membro, em movimentos ascendentes

através dos ossos, em direção ao coração.

Mas a manhã chega com os pequenos 

adiamentos do café, e do canto dos pássaros.

Uma árvore do lado de fora da janela,

que há pouco era apenas uma sombra,

recuperou seus galhos frondosos

ramo por ramo.

E enquanto eu retomo o meu corpo,

o sol pousa mansamente em meu colo

como se quisesse fazer as pazes.


* Linda Pastan é uma poeta norte-americana de origem judia. Nasceu em Nova York, em 1932. No próximo dia 29 de maio completará noventa anos! Já publicou 15 livros de poemas. 

09/05/2022

Nem, nem...




Faz frio, mas está quente. Há risos, enquanto todos choram. Um corte no céu; da boca abre-se um rio de lamentos que repercutem pelas costas das encostas. Não cheguei, nem parti. Fui esquadrinhada, esquartejada. Quadricularam-me em bolhas de sabão, e por isso vivo escorregando em cascas de bananas. As bananeiras não têm galhos, mas os macacos vivem pulando, jogando suas cascas para que escorreguemos.

04/05/2022

O medo

 Man Ray




Porque há para todos nós um problema sério...Este problema é o do medo

Antonio Cândido, Plataforma de uma geração.


Em verdade temos medo.

Nascemos escuro.

As existências são poucas:

Carteiro, ditador, soldado.

Nosso destino, incompleto.


Cheiramos flores de medo.

Vestimos panos de medo.

De medo, vermelhos rios

vadeamos.


Somos apenas uns homens

e a natureza traiu-nos.

Há as árvores, as fábricas,

doenças galopantes, fomes.


Refugiamo-nos no amor,

este célebre sentimento,

e o amor faltou: chovia,

ventava, fazia frio em São Paulo.


Fazia frio em São Paulo...

Nevava.

O medo com sua capa,

nos dissimula e nos berça.


Fiquei com medo de ti,

meu companheiro moreno,

de nós, de vós: e de tudo. Estou com medo da honra.


Assim nos criam burgueses.

Nosso caminho: traçado.

Por que morrer em conjunto?

E se todos nós vivéssemos?


Vem, harmonia do medo,

vem, ó terras das estradas,

susto na noite, receio de águas poluídas. Muletas


do homem só. Ajudai-nos,

lentos poderes do láudano.

Até a canção medrosa se parte, se transe e cala-se.


Faremos casas de medo,

duros tijolos de medo,

medrosos caules, repuxos,

ruas só de medo e calma.


E com asas de prudência,

com resplendores covardes,

atingiremos o cimo

de nossa cauta subida.


O medo, com sua física,

tanto produz: carcereiros,

edifícios, escritores,

este poema; outras vidas.


Tenhamos o maior pavor.

Os mais velhos compreendem.

O medo cristalizou-os.

Estátuas sábias, adeus.


Adeus: vamos para a frente,

recuando de olhos acesos.

Nossos filhos tão felizes...

Fiéis herdeiros do medo,


eles povoam a cidade.

Depois da cidade, o mundo.

Depois do mundo, as estrelas,

dançando o baile do medo.


Carlos Drummond de Andrade, em A rosa do povo 

25/04/2022

Palavras que andarilham


Palavras trôpegas tropeçam pelas ruas da linguagem. Andarilham ao relento; como curtos-circuitos, desencapam fios, desconectando a chave geral da comunicação. Obscuridade. Caminham num arquejar de soluços cansados; cambaleiam entre as linhas que equilibram seu corpo frágil. É preciso resistir para que outras venham auxiliá-las, a despeito de máquinas ou avatares. Pássaros sobrevoam telhados para criar seus ninhos. Palavras voam à procura de vozes que as representem; seus pêlos se eriçam, saltam, transpiram, transbordam no suor que desliza sobre o fio da imaginação... E imaginação é uma capacidade, um direito,e a disponibilidade para voar tão ou mais alto do que os pássaros; não tem fronteiras, nem barreiras que a impeçam de ir além das coisas comezinhas, de preconceitos e falsos moralismos. Antes das palavras, ela já andarilhava embrionariamente no líquido amniótico que a gerou. Talvez seja por isso que as palavras têm força; sua matriz é o começo de tudo, é a própria vida, e sobreviverá ad infinitum...!

19/04/2022

Ao Tempo




Tempo, vais para trás ou para diante?

O passado carrega a minha vida

Para trás e eu de mim fiquei distante,

Ou existir é uma contínua ida

E eu me persigo nunca me alcançando?

A hora da despedida é a da partida

A um tempo aproximando e distanciando...

Sem saber de onde vens e aonde irás,

Andando, andando, andando.

Tempo, vais para diante ou para trás?


Dante Milano, Rio de Janeiro - 1899-1991