DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

06/05/2009

"Joãozinho-Sem-Medo"


Era uma vez um menino chamado Joãozinho-Sem-Medo, pois não tinha medo de nada. Andava pelo mundo e foi parar em uma hospedaria, onde pediu abrigo.

- Aqui não tem lugar - disse o dono - mas se você não tem medo, posso mandá-lo para um palácio.

- Por que eu sentiria medo?

- Porque alí a gente sente, e ninguém saiu de lá a não ser morto. De manhã a Companhia leva o caixão para carregar quem teve a coragem de passar a noite lá.

Imaginem Joãozinho! Levou um candeeiro, uma garrafa, uma linguiça, e lá se foi.

À meia-noite, comia sentado à mesa quando ouviu uma voz saindo da chaminé:

- Jogo?

E Joãozinho respondeu:

- Jogue logo!

Da chaminé desceu uma perna de homem. Joãozinho bebeu um copo de vinho.

Depois a voz tornou a perguntar:

- Jogo?

E Joãozinho:

- Jogue logo!

E desceu outra perna de homem. Joãozinho mordeu a linguiça.

- Jogo?

- Jogue logo!

E desceu um braço. Joãozinho começou a assoviar.

- Jogo?

- Jogue logo!

Outro braço.

- Jogo?

- Jogue!

E caiu um corpo que se colou nas pernas e nos braços, ficando de pé um homem sem cabeça.

- Jogo?

- Jogue!

Caiu a cabeça e pulou em cima do corpo. Era um homenzarrão gigantesco, e Joãozinho levantou o copo dizendo:

- À saúde!

O homenzarrão disse:

- Pegue o candeeiro e venha.

Joãozinho pegou o candeeiro, mas não se mexeu.

- Passe na frente! - disse Joãozinho

- Você! - disse o homem

- Você! - disse Joãozinho

Então o homem se adiantou e de sala em sala atravessou o palácio, com Joãozinho atrás, iluminando. Debaixo de uma escadaria havia uma portinhola.

- Abra! - disse o homem a Joãozinho

E Joãozinho:

- Abra você!

E o homem abriu com um empurrão. Havia uma escada em caracol

- Desça - disse o homem

- Primeiro você - disse Joãozinho

Desceram a um subterrâneo, e o homem indicou uma laje no chão

- Levante!

- Levante você! - disse Joãozinho, e o homem a ergueu como se fosse uma pedrinha.

Embaixo havia três tigelas cheias de moedas de outo

- Leve para cima! - disse o homem

- Leve para cima você! - disse Joãozinho. E o homem levou uma de cada vez para cima.

Quando foram de novo para a sala da chaminé, o homem disse:

- Joãozinho, quebrou-se o encanto! - Arrancou-se uma perna, que saiu esperneando pela chaminé - Destas tigelas uma é sua - Arrancou-se um braço, que trepou pela chaminé. - Outra é para a Companhia que virá buscá-lo pensando que você está morto. - Arrancou-se também o outro braço, que acompanhou o primeiro - A terceira é para o primeiro pobre que passar. - Arrancou-se outra perna e ele ficou sentado no chão - Pode ficar com o palácio também. - Arrancou-se o corpo e ficou só a cabeça no chão. - Porque se perdeu para sempre a estirpe dos proprietários deste palácio - E a cabeça se ergueu e subiu pelo buraco da chaminé.

Assim que o céu clareou, ouviu-se um canto: Miserere mei, miserere mei, e era a Companhia com o caixão que vinha recolher Joãozinho morto. E o vêem na janela, fumando cachimbo.

Joãozinho-Sem-Medo ficou rico com aquelas moedas de ouro e morou feliz no palácio. Até que um dia aconteceu que, virando-se, viu sua sombra e levou um susto tão grande que morreu.


Extraído de "Fábulas Italianas", sob a coordenação de Ítalo Calvino (1923-1985)


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