DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

15/03/2011

O raio


ACONTECEU-ME UMA VEZ, num cruzamento, no meio da multidão, no vaivém.
Parei, pisquei os olhos: não entendia nada. Nada, rigorosamente nada: não entendia as razões das coisas, dos homens, era tudo sem sentido, absurdo. E comecei a rir.
Para mim, o estranho naquele momento foi que eu não tivesse percebido isso antes. E tivesse até então aceitado tudo: semáforos, veículos, cartazes, fardas, monumentos, essas coisas tão afastadas do significado do mundo, como se houvesse uma necessidade, uma coerência que ligasse umas às outras.
Então o riso morreu em minha garganta, corei de vergonha. Gesticulei, para chamar a atenção dos passantes e - Parem um momento! - gritei - Tem algo estranho! Está tudo errado! Fazemos coisas absurdas! Este não pode ser o caminho certo! Onde vamos acabar?
As pessoas pararam ao meu redor, me examinavam, curiosas. Eu continuava alí no meio, gesticulava, ansioso para me explicar, torná-las participantes do raio que me iluminara de repente: e ficava quieto. Quieto, porque, no momento em que levantei os braços e abrí a boca a grande revelação foi como que engolida e as palavras saíram de mim assim, de chofre.
- E daí? - perguntaram as pessoas - O que o senhor quer dizer? Está tudo no lugar. Está tudo andando como deve andar. Cada coisa é consequência de outra. Cada coisa está vinculada às outras. Não vemos nada de absurdo ou de injustificado!
E alí fiquei, perdido, porque diante dos meus olhos tudo voltara ao seu devido lugar e tudo me parecia natural, semáforos, monumentos, fardas, arranha-céus, trilhos de trem, mendigos, passeatas, e no entanto não me sentia tranquilo, mas atormentado.
- Desculpem - respondí. - Talvez eu é que tenha me enganado. Tive a impressão. Mas está tudo no lugar. Desculpem. - E me afastei entre seus olhares severos.
Mas, mesmo agora, toda vez (frequentemente) que me acontece não entender alguma coisa, então, instintivamente, me vem a esperança de que seja de novo a boa ocasião para que eu volte ao estado em que não entendia mais nada, para me apoderar dessa sabedoria diferente, encontrada e perdida no mesmo instante.


Ítalo Calvino (1923-1985)

6 comentários:

  1. Boa tarde, amiga Cirandeira!
    Essa estranheza, esse incômodo que o homem, digamos, "mais sensível" se apercebe ao transitar no mundo dito civilizado é uma marca das mais fortes nesse texto. Incrível, mas o Japão acaba de mostrar com um grito de dor (milhares de mortos e desaparecidos) a que ponto nos embrenhamos num progresso sem sentido, mas que muitos calam e reprimem. Há que se pensar nisso tudo, eu acredito.
    Aquelas mulheres marroquinas no deserto, que imagem!
    Enquanto alguns "sabichões" da blogosfera nos ignoram, recebo com alegria e responsabilidade suas palavras de incentivo.
    Obrigada por tudo, minha querida!
    Prossiga nessa beleza de trabalho, pois o importante não é o caminho e sim o caminhar...
    Abraço bem carinhoso!!!

    ResponderExcluir
  2. Pois é, minha cara... infelizmente, nada jamais será como foi antes!

    ResponderExcluir
  3. É muito forte o texto, Cirandeira! Dá uma balançada nas nossas almas. Ítalo Calvino é maravihoso em seus textos. Li dele Seis Prospostas para o Próximo Milênio. Vanusa colabora tocando na delicadeza do assunto Japão. O que estamos fazendo, caramba???!!! O encontro com seu blog e seus aliados está sendo muito bom. Um grande abraço, querida! Prossigamos.

    ResponderExcluir
  4. Adoro o Calvino, Cirandeira. Mas não vou comentar sobre esse texto não, senão vou acabar falando do dia em estava zanzando pelo centro do Rio com um amigo quando de repente nos tocamos que nariz é uma coisa muito engraçada. E ficamos mais de meia hora observando cada nariz que passava e caindo na gargalhada! (Ó céus, como eu perco o meu tempo com besteira, hem!)

    Beijos

    ResponderExcluir
  5. Oi, Cirandeira,

    Sua observação sobre o desaparecimento de um comentário seu lá no DS me levou a instaurar uma CPI para apurar essa grave denúncia. Convoquei meus parceiros, revistei todos eles, dei uma geral no blog e... nada. Mas apurei que desapareceram cerca de 30 (trinta!) comentários de uma postagem da Elza! Justo uma que reproduz três poemas fesceninos de Drummond, Bandeira e Hilda Hllst. Estranho, né? Será coisa de algum racker ultramoralista?

    Bem, mas isso não explica o sumiço do seu comentário que, creio, não devia ser tão eroticamente apimentado quanto os três poemas...

    A CPI continua!

    Beijos

    ResponderExcluir
  6. Ah, ah,ah...és demais! Tuca, talvez seja melhor
    encaminhar a CPI por outros meandros, pode ser por puro vandalismo, sei lá! Isso já está se tornando corriqueiro, até...!

    Beijos

    ResponderExcluir