DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

16/04/2011

Meu ideal seria escrever...

Edward Hopper
Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse - "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria - "mas essa história é mesmo muito engraçada".

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse - e tão fascinante de graça, tão irressistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aquelas mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse - "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!". E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea hoenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês em Chicago - mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nuca ouví uma história assim tão engraçada, e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouví-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já tivesse morto, sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento, é divina."

E quando todos me perguntassem - "mas de onde é que você tirou essa história?" - eu responderia que ela não é minha, que eu a ouví por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouví um sujeito contar uma história..."

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.


Rubem Braga, Cachoeiro do Itapemirim-ES (1913-1990)

6 comentários:

  1. Cirandeira,
    De histórias assim é o que todos estamos a precisar.
    Este post encantou-me!

    Beijo :)

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  2. Que maravilha! Um mundo assim tão receptivo e sensível a uma história encantadora nem precisaria da História.

    De tudo que li e soube do Rubem Braga, creio que isso não é apenas mais uma história.

    Beijo.

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  3. Pois é Agostinho, como não dispomos de um mundo
    que nos dê vontade de rir tanto assim, resta-nos contentarmo-nos pelo menos com histórias
    que nos dêem um pouco de alento pra sorrir pelos cantos da boca :)

    Beijos

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  4. Com certeza, Marcantonio. Rubem Braga além de ser um cronista excepcional, conhecia muito bem a História e suas vicissitudes...! Bom mesmo seria não precisarmos de uma história,
    mas que tivéssemos um mundo que nos fizesse rir
    às gargalhadas para encará-lo de frente!

    Beijos

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  5. Lelena, Lelena! Não chores "de barria cheia",,,
    Escreves tão bem, e nos levas às nuvens!!!

    beijos

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