DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

19/11/2011

A vertigem do tempo

Foto: Louis Lumière, 1904
No verão de 1965, um velho senhor mergulhava, todas as manhãs, no mar de um balneário próximo a Nice, na França. Os frequentadores da praia diziam que era um homem rabugento, pois não falava com ninguém, ignorava o mundo. "Ora, deixem-no em paz!", defendia-o o dono do botequim praiano. "Durante toda a sua vida o aborreceram. Agora, ele tem o direito de descansar."
As crianças se intrigavam porque, entre um mergulho e outro, o velho tinha o hábito de desenhar, na areia molhada, riscos enigmáticos, nunca figuras. Ele passava longas horas em uma pequena cabana, erguida no rochedo. Parecia perdido e estranho. Em uma manhã escaldante, o velho senhor deu seu mergulho matinal e não foi mais visto. Nunca mais. O inquérito policial falou em "afogamento", quando seu destino se parecia mais com uma escolha. No dia seguinte, os jornais estampavam: "Morre Le Corbusier".
O triste fecho para a vida do arquiteto genial contradiz todo o seu passado de glórias. Durante seus 68 anos de vida, Le Corbusier parecia imortal. A consagração era asfixiante. Apesar dela, a chegada dos anos o transformou em um velho qualquer. Será que ele contava com isso? Uma frase de Louis-Ferdinand Céline, escrita também na velhice, sintetiza esse destino incongruente: "Não passamos de um velho poste de lembranças em uma esquina que quase ninguém mais cruza".
Para o autor autor, a velhice, é uma espécie de arma enfurecida, que fulmina, indistintamente, tudo e todos. Não faz escolhas, faz vítimas.
A triste história de Le Corbusier é só um dos capítulos de "Eles se Acreditavam Ilustres e Imortais...", coletânea de ensaios breves sobre a velhice incoerente de artistas famosos. O livro é assinado por Michel Ragon. Doloroso paradoxo: quanta glória e quanta tristeza! A velhice, nos mostra Ragon, é uma espécie de arma enfurecida, que fulmina, indistintamente, tudo e todos. Não faz escolhas, faz vítimas. Não tem moral, ou gosto, tampouco bons sentimentos - tem fome.
Lembra Ragon que um dia, já velho e doente, Charles Chaplin chegou, amparado pela filha Geraldine, a um vernissage na Suíça. "Ninguém reconhecia nem se importava com o ancião de cadeira de rodas que Carlitos se tornara", relata. Atordoado não pelo assédio, mas pelo desprezo, Chaplin teria dito a Geraldine: "Sabe, eu também era conhecido antigamente". Velhices, o autor nos lembra, são sempre inverossímeis. Desmentem, sem pudor ou delicadeza, toda a vida que a antecedeu. Nem todos os artistas conseguem, apesar da dor e fraqueza, conservar a dignidade. Muitos sucumbem - como corpos que devorassem a si mesmos.
Para montar sua coleção de retratos, Ragon partiu de um princípio: "Todos tiveram uma velhice trágica, com esquecimento que, para alguns, parecia definitivo". Quem se lembra, por exemplo, de Paul Fort, o penúltimo Príncipe dos Poetas franceses (o último teria sido Jean Cocteau)? "Do poeta popular que foi, e dos 40 volumes de suas 'Ballades Françaises', permanecem apenas alguns textos encantadores musicados por Georges Brassens", o autor rememora. Quando digitamos "Paul Fort" no Google, não chegamos a mais que três linhas.
Le Corbusier, que aos 68 anos deu um mergulho sem volta no mar de um balneário perto de Nice: esse triste fim do genial arquiteto contradiz o seu passado de glórias
Michel Ragon nos lembra do destino trágico de Alexandre Dumas, homem vigoroso e sensual, que, aos 68 anos, só se movimentava com uma poltrona rolante. "Seu sexo, do qual tanto se orgulhara, agora o envergonha", descreve. "Precisa chamar alguém para que sua incontinência não molhe as calças." Um dia, o filho tenta reanimá-lo, anunciando que Garibaldi está na Borgonha, à frente dos camisas-vermelhas, em combate contra a Prússia. No passado, os dois lutaram juntos. Mas e agora, o que ainda os aproxima? "A paixão prevalece", ainda diz Dumas, apegando-se a um fio de esperança. O filho o aniquila: "A paixão não desculpa nada".
A escritora Françoise Sagan e a atriz Brigitte Bardot foram amigas de juventude e parceiras de beleza. "Simbolizaram a libertação da mulher de todas as imposições, preconceitos, proibições", escreve Ragon. Aos 17 anos, quando publicou o célebre "Bom Dia Tristeza", Françoise parecia uma estrela que jamais deixaria de brilhar. Levou, porém, uma existência desordenada, sempre perseguida pelo fisco e pela polícia de entorpecentes. Aos 54 anos, uma velha precoce, fraturou o fêmur. "Sua derrocada é tão vertiginosa quanto seu sucesso", Ragon constata. Recolhida a um hospital geriátrico, recebe, um dia, uma visita de surpresa. É Brigitte Bardot que, sustentando ainda restos de esplendor, deseja estar com ela. Françoise, porém, se recusa a vê-la, "para não expor sua ruína".
Mas, na maior parte das vezes, a ruína não se deixa esconder. Em 1945, ano em que Adolf Hitler foi derrotado, Knut Hamsun - o mais importante narrador norueguês do século XX - tem dificuldades para escutar a notícia. "Marie, sua mulher, grita-lhe no ouvido. Ele está surdíssimo", conta Ragon. Mesmo fraco, Hamsun logo decide escrever o necrológio de Hitler. O ódio aos ingleses e aos americanos, com seu apego à modernidade que ele execrava, o levou a aderir ao nazismo. A admiração por Hitler, porém, não macula a grandeza da obra literária. "A obra tão singular de Knut Hamsun se explica ao mesmo tempo por seu autodidatismo, sua perpétua vagabundagem e pela situação singular de seu país natal", cogita Ragon.
Quando, em 1905, a Noruega recuperou a independência, Hamsun já tinha 46 anos. Quando o nazismo se expande sobre a Europa, já é um septuagenário. Suas escolhas políticas não combinam, porém, com sua grandeza literária. É internado como louco e submetido a longos interrogatórios. A velhice o põe sob suspeita. Foi, enfim, liberado - para uma decadência interminável. Só morreu em 1952, aos 93 anos. Seu estado era digno de lástima. Mais repulsivo ainda era o sentimento de exclusão. "O que fiz não foi bem compreendido", disse. "Perdi e devo assumir isso."
A glória literária não estanca a derrota do corpo e as suspeitas que recaem, em consequência, sobre o psiquismo. O filósofo René Descartes, que jamais adoecera, desprezava as drogas e os boticários. Doente, prescrevem-lhe lavagem e sangria. Recusa não só os remédios, mas a comida. Só acreditava em certa emulsão infalível, resultado do tabaco infundido no vinho. Seu médico, mesmo horrorizado, cede - mas exige que as doses sejam diluídas. Quem pode levar a sério o desejo de um velho? Em 11 de fevereiro de 1650, René Descartes morre. Carregou consigo a crença de que Cristina, a rainha da Suécia, sua aluna de filosofia, mesmo diante de sua indisfarçável decadência, se interessava por ele. "Acreditava que a rainha o amava (quer dizer, amava seu espírito) e que ela o matou." Mesmo a mais brilhante das mentes se deixa roer. A vertigem não poupa a glória.

José Castello, Rio de Janeiro, 1951 - biógrafo, cronista, romancista, crítico literário e jornalista.

6 comentários:

  1. Lendo e pensando...

    Porque ando relendo Jung, lembrei-me dele, da vida rica e da morte relativamente tranquila. Até o fim trabalhando, pensando, transformando. Acho uma visão muito negativa da velhice. Certamente que outros poderiam escolher histórias diferentes. Enfim...

    Deu trsiteza ler, mas curiosidade também.Beijos,

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  2. Excelente texto. As limitações e a indiferença a que somos submetidos na velhice, acabam fazendo da finitude um santo remédio. Que as nossas velhices não nos sejam tão amargas. Bjs.

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  3. Não se trata propriamente de "uma
    visão negativa da velhice", Tânia,
    mas de pessoas que na vida real passaram por isso. É claro que existem outras que tiveram a sorte
    de serem poupadas, mas a verdade é
    que os mais velhos não são respeita
    dos como deveriam ser. Existe em
    nossa sociedade ocidental o culto
    e o mito da eterna juventude, como se fôssemos eternos! Não temos o
    direito de envelhecer? É uma lei natural da vida, não escapa ninguém, a não ser que morra ainda jovem. Sabemos muito bem o tratamento que é dispensado aos mais velhos, que em realidade, são os nossos pais, os nossos avós!

    beijos

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  4. Tomara, Terráqueo, tomara!!!
    Tava sentindo tua falta! Por onde tens andado, viajante?

    beijos

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  5. Esse livro mencionado, o de Ragon, deve ser muito interessante. Mas ouso dizer que a capacidade de escrever, e assim abstrair idealmente, particulariza anedoticamente os problemas. Essa vivência da decadência e do esquecimento na velhice é um fardo de todo ser humano, seja o pipoqueiro da esquina ou o Chales Chaplin. E neste último não é senão mais propício à formulação de uma anedota. Porque, afinal, existe um tipo de visão gloriosa de si mesmo que prescinde de reconhecimento oficial, que comumente se apelida de auto-estima ou superconfiança e que naufraga inevitavelmente ao longo dos anos. E a grande perda não é do que se adquiriu, mas do que já se trazia, a própria vida. Aqueles entre os célebres que se supunham imortais, a salvo da decadência, deviam então ter algum tipo de cegueira estúpida não condizente, no fundo, com a sua suposta grandeza. Afinal, não consigo conceber que mesmo um artista que se veja venerado ainda aos noventa anos, não tenha dentro de si a certeza angustiante da própria decadência. Não existe velhice boa, talvez apenas menos ruim. Dentro de si mesmos, os mais idosos não comungam com o conceito (precocemente senil, aliás)e hipócrita de que vivem a melhor idade.
    Enfim, creio que essa relação velhice/decadência sob o viés da fama e do vigor criativo é um falso problema na medida em que muitos viveram o esquecimento ainda jovens, como o caso mais célebre, Mozart, que foi da glória à vala comum em 27 anos. E mesmo que ele envelhecesse de forma majestática, não se sentiria muito menos traído pela vida.

    Beijo.

    Ps.: Talvez este comentário se alimente de uma situação particular que tenho testemunhado nos últimos anos.

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  6. É, Marcantonio, a velhice não poupa ninguém, mas independente de
    ser celebridade, acho que somos
    educados(!?)para uma existência eterna e por isso, a sociedade rejeita, discrimina aqueles que não
    são jovens. Particularmente, considero a velhice um fardo muito
    pesado e difícil de carregar, não
    tenho a menor pretensão de ficar para semente e carregar a bandeira
    da "sabedoria". Pior do que o esquecimento é o abandono a que são submetidos os velhos!

    um beijo

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