DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/12/2021

O fluxo do tempo



[rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedosamente e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é].


Raduan Nassar, em Lavoura Arcaica

25/12/2021

(Re)Nascimento





O saco do velho está cheio de privilégios. Já passou a hora de abri-lo e distribuir essa acumulação para os que não têm nada. É imprescindível dar lugar para o que é novo, para a mudança. O saco dos necessitados está vazio, cheio de fome e de miséria. Cansados e extenuados os que têm fome já não aceitam as cascas de bananas que lhes são oferecidas. Cada macaco no seu galho, mas existem macacos que pulam de galho em galho para jogar suas cascas nos que estão embaixo. Chega de escorregões e falsas promessas. Que sejam rasgados todo os sacos do egoísmo, da ganância e da intolerância. Chegou a hora de RENASCER!

16/12/2021

Das pedras

 



Envolvi-me com pedras; sentei, deitei e rolei com elas. Apalpei-as, senti o seu cheiro, sua transpiração, e sua indiferença à minha presença. Ouvi o ruído do vento, seu farfalhar sobre as folhas, sobre os telhados. O vendaval, feito um torpedo, não se deteve diante dos destroços por ele provocados. Brinquei com pedras, joguei-as para cima e para baixo. De tanto misturar-me transformei-me numa delas. Hoje sou manipulada: jogam-me contra os pássaros, contra os animais, contras as pessoas. Sou pedra fria feita da poeira acumulada através dos tempos. Entretanto, posso tornar-me um rochedo, que enfrenta a brutalidade e a insensatez das marés humanas.

10/12/2021

Quando

 


Quando o poder que emana do povo deixa de ser exercido, ou contra o povo se exerce, alegando servi-lo; quando a autoridade carece de autoridade, e o legítimo se declara ilegítimo; quando a lei é uma palavra batida e pisada, que se refugia nas catacumbas do direito; quando os ferros da paz se convertem em ferros de insegurança; quando a intimidação faz ouvir suas árias enervantes, e até o silêncio palpita de ameaças; quando faltam a confiança e o arroz, a prudência e o feijão, o leite e a tranquilidade das vacas; quando a fome é industrializada em slogans e mais fome se acumula quanto mais se promete ou se finge combater a fome; quando o cruzeiro desaparece no sonho de uma noite de papel, por trás de um cortejo de alegrias especuladoras e de lágrimas assalariadas; quando o mar de pronunciamentos frenéticos não deixa fluir uma gota sequer de verdade; quando a gorda impostura das terras dadas enche a boca dos terratenentes; quando a altos brados se exigem reformas, para evitar que elas se implantem, e assim continuem a ser reclamadas como dividendos políticos; quando os reformadores devem ser reformados; quando a incompetência acusa o espelho que a revela dizendo que a culpa é do espelho; quando o direito constitucional é uma subdisciplina militar e substitui a disciplina pura e simples; quando o plebiscito é palavra mágica para resolver aquilo que a imaginação e a vontade dos que a pronunciam não souberam resolver até hoje; quando se dá ao proletariado a ilusão de decidir o que já foi decidido à sua revelia, e a ilusão maior de que é um benefício; quando os piores homens reservam para si o pregão das melhores ideias, falsificando-as; quando é preciso ter mais medo do governo do que os males que ao governo compete conjurar; quando o homem sem culpa, à hora de dormir, indaga a si mesmo se amanhã acordará de sentinela à porta; quando os generais falam grosso em nome de seus exércitos, que não podem falar para desmenti-los; quando tudo anda ruim e a candeia da esperança se apaga e o If* de Kipling na parede não resolve; então é hora de recomeçar tudo outra vez, sem ilusão, e sem pressa, mas com a teimosia do inseto que busca um caminho no terremoto.


Crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada no Correio da Manhã, em 14.09.1962.

* If, que em português significa Se, é um poema de Rudyard Kipling, escrito em 1895 e publicado pela primeira vez em 1910.

03/12/2021

Coceira de ouvido

 


No começo era apenas um leve zumbido, como se fosse um enxame de abelhas se dispersando da colmeia; não dava para saber de onde vinha. Era um atordoamento seguido de desequilíbrio espacial. As estrelas surgiam à noite, mas o sol, que também é uma estrela, só aparecia durante o dia. As abelhas estão desaparecendo, e as pessoas estão cada dia mais amargas; as algas parasitárias têm se reproduzido exponencialmente, competindo com os plásticos e isopores nos rios e mares. O planeta Terra está se tornando um grande pântano. Estaremos nós nos transformando em caranguejos, querendo voltar às cavernas? Seremos pedras ou estátuas? Estas, vieram daquelas que hoje são lançadas contra certos vultos que nada representam os seres humanos. Muitos ouvidos dispõem apenas de orelhas, que servem somente para dar ressonância a boatos trazidos pelo vento, para desequilibrar os pensamentos.

24/11/2021

Dois poemas




Capricho


Por trás de cada espelho

há uma estrela morta

e um arco íris menino que dorme.

Por trás de cada espelho

há uma calma eterna

e um ninho de silêncios

que não voaram.

O espelho é uma múmia

do manancial, se fecha

como concha de luz,

através da noite.

O espelho

é a mãe-orvalho,

o livro que deseja

os crepúsculos, o eco feito carne.

(Federico Garcia Lorca, 1898-1936 - Granada, Espanha)


*****


Quero o poema

terra-a-terra,

o poema raso,

o poema vil,

o poema vivo,

o poema-víbora,

o poema

fácil e fatal,

louco e lindo

feito o bem sobre o mal.

(Alberto da Cunha Melo, Jaboatão dos Guararapes-PE, 1942-2007)

15/11/2021

Para quebrar a cabeça



1 - Com os pés na lama, as mãos na chama, buscava a fama. Onde estaria o fogo?


2 - Armou a barraca, deitou-se numa rede, e caiu do cavalo: a dama era de espadas!


3 - O rio Negro encontrou-se com o Mar da Prata: estava formada a pororoca.


4 - O sal que caía dos olhos temperou o feijão, e da panela saltaram profundos olhos escuros: o dia anoiteceu.


5 - Mamou, mamou até cair na vala comum dos empanturrados; era o dono da corda, mas não conseguiu manter a cabeça.


6. O mar ainda tem muitos peixes; os maiores engolem os menores. Quem engole os tubarões?

11/11/2021

Tanto mar



Quando o mar não quebra na praia, mais cedo ou mais tarde arrebentará com muito mais força na sua orla; torrentes de ondas tormentosas surgirão de forma avassaladora e inesperada, destruindo o que estiver à frente dele. O vento que sopra sobre as areias do deserto, e a poeira que  alevanta, forma miragens visuais. O seu canto nos lembra as antigas e traiçoeiras sereias que tentaram iludir Ulisses em sua odisseia.  Assim como o mar, as ondas cerebrais vão e vêm, mas quando arrebentam não têm volta: transformam-se em curtos circuitos, queimam e ficam desconectadas, provocando distúrbios mentais, desequilíbrios sociais.                                                                          Tanto mar, tanto amor, e tantas ilhas de ódio a dividir continentes humanos...!

08/11/2021

De Machado de Assis

 



" - O mundo, (...) é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira".

Extraído conto Ideias do canário

04/11/2021

De Sophia de Mello Breyner Andresen




Mar


Mar, metade da minha alma é feita de maresia

Pois ela é pela inquietação e nostalgia,

Que há no vasto clamor da maré cheia,

Que nunca nenhum bem me satisfez

E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia,

Mais fortes se levantam outra vez,

Que após cada queda caminho para a vida,

Por uma nova ilusão,

Entontecida.


E se vou dizendo aos astros o meu mal

É porque também tu revoltado e teatral,

Fazes soar a tua dor pelas alturas,

E se antes de tudo odeio e fujo

Do que é impuro, profano e sujo,

É só porque as tuas ondas são puras.


Inscrição


Quando eu morrer voltarei para buscar

Os instantes que não vivi junto do mar.



Este é o tempo


Este é o tempo

Da selva mais obscura


Até o ar azul se tornou grades

E a luz do sol se tornou impura


Esta é a noite

Densa de chacais

Pesada de amargura


Este é o tempo em que os homens renunciam.


Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu na cidade do Porto (Portugal) - 1919-2004.

31/10/2021

De Paulina Chiziane



Escutai os lamentos que me saem da alma. Vinde, sentai-vos no sangue das ervas que escorre pelos montes, vindes, escutai repousando os corpos cansados debaixo da figueira enlutada que derrama lágrimas pelos filhos abortados. Quero contar-vos histórias antigas, do presente e do futuro, porque tenho todas as idades e ainda sou mais novo que todos os filhos e netos que hão-de nascer. Eu sou o destino. A vida germinou, floriu e chegamos ao fim do ciclo. Os cajueiros estão carregados de fruta madura, é época de vindima, escutai os lamentos que me saem da alma, KARINGANA WA KARINGANA. *                          A xipalapala** soou, mamã, eu vou ouvir as histórias, eu vou. O culunguana*** ouviu-se do lado de lá, chegou a hora, mãe, conta-me aquela história do coelho e da rã. O búfalo enfureceu os meus tímpanos, quero ouvir coisas de terror, da guerra e da fome.


Em Ventos do Apocalipse (1993)

* Expressão utilizada pelos rongas quando começam a contar uma história tradicional; em português do Brasil corresponde a "Era uma vez"

** Corneta feita de chifre de impala, vaca ou búfalo para anunciar convocações

*** Aclamações


Paulina Chiziane nasceu em Manjacaze (Moçambique) em 1955. É autora de vários livros, entre os quais estão Balada de amor ao vento; O sétimo juramento; Niketche: uma história de poligamia (Prêmio José Craveirinha); O alegre canto da perdiz; Eu, mulher: por uma nova visão do mundo; O canto dos escravizados. Em 2021 foi agraciada com o Prêmio Camões. 

27/10/2021

Memoricídio




Tudo agora é silêncio. Corro até o mar em busca da voz perdida. O ir e vir das ondas abraça meus pés docemente, sem nada dizer-me. Aguço os ouvidos, mesmo assim, ouço apenas um débil sussurrar de espumas, algo indizível, como se viesse de uma terra longínqua; uma voz em agonia que penetrou o silêncio, e se perdeu no mar: lagos, lágrimas, blocos de palavras congeladas, geleiras de vocábulos, nuvens de parágrafos condensados suspensos na vastidão oceânica.

                      Uma multidão de vozes emudecidas, aguardando a chegada de uma tempestade que rompa as comportas do medo, e do silêncio.  

18/10/2021

História de onça

 



Era uma vez uma onça! Era o que se dizia antigamente quando alguma coisa não terminava satisfatoriamente. Pois bem, a onça que anda circulando por aí, dizem, é pintada e pinta sua boca. Dentro dela existe um céu cheio de estrelas dentadas, que espalham pigmentos sobre o seu corpo; tais pigmentos se transformam em pigmeus pigmaliônicos, primos dos tigres, das jaguatiricas e até dos leões, quem sabe...? Os habitantes deste céu de boca, não se comunicam com o mundo externo, vivem numa espécie de bolha; tudo que aprendem é transmitido por um espelho que reflete imagens distorcidas, através de discursos. Todos os dias a onça abre sua boca pintada,  atrás de uma cortina (para que entre um pouco de luz) e vocifera grunhidos que são aplaudidos pela fauna que a rodeia. Tal expediente, costuma acontecer ao amanhecer e termina ao cair a noite, quando então, surge o rosto azul do mar, mesclado de estrelas.

Seria, por acaso, o corpo de um céu estrelado numa noite escura? Ou seria mesmo o céu da boca de uma onça pintada, cheia de dentes afiados, pronta para nos engolir? Em situações adversas corre-se o risco de ter alucinações. Que não me venham com paralelepípedos polidos para "urbanizar" as ruas da linguagem imaginária...!

12/10/2021

Da minha tristeza




A minha tristeza é feita das cinzas que surgem do fogo que devasta as florestas, animais, pássaros e todos os seres vivos que habitam a Terra; é feita de soluços e do silêncio involuntário das bocas sem dentes, dos estômagos vazios que, enfileirados se aglomeram nas portas dos açougues por um punhado de ossos ou pés de galinhas para matar sua fome. 

A minha tristeza é feita da poeira que se acumulou ao longo dos anos, formando pedras afiadas como facas, desafiando o abismo que há entre o Homem e a Natureza, entre a ausência e o existir.                              A minha tristeza é como o fluir da água que lava para clarear a sujeira escura. É como o fogo incandescente que brilha durante a noite, muito além da ambição gananciosa dos que se regozijam com o poder.

07/10/2021

Dois poemas de Nizar Qabbani *

 Desenhos de crianças sírias



Paixão


Entre teus seios existem aldeias incendiadas,

inúmeros poços,

restos de barcos naufragados

e armaduras de homens assassinados.

Nenhum regressou.

Todos que se deitaram entre teus seios

desapareceram

e os que nele permaneceram até o amanhecer

se suicidaram.


*****


A função da poesia é fornecer-te um passaporte

sem interferir nos detalhes da viagem

no horário dos trens que apanhas

ou no nome dos hotéis onde te hospedarás.

A função da poesia

é colocar à tua frente

a garrafa e o copo

e deixar que te embriagues

à tua maneira.


* Nizar Qabbani, nasceu em Damasco, capital da Síria, em 1923, e faleceu em 1998. 

29/09/2021

Ece Homo

 


Não ser quem não se é é coisa trabalhosa.

Exige a disciplina austera e rigorosa

de quem, achando pouco simplesmente ser,

requer o luxo adicional de parecer.


As essências enganam, e o eu é tão escasso

que há que ocupar com alguma coisa tanto espaço,

e nada como a negação

pra efetuar tão delicada operação.


E pronto: está completo. O homem mais o andróide,

imune a suave mari magno e Schadenfreude,

ser e não ser na mais perfeita sintonia.

Use e abuse. A coisa vem com garantia.



Piada de câmera


A invenção da palavra

desinventa o real

e põe no lugar da coisa

um enfezado matagal -

mistura de a coisa haver

com não haver coisa tal.

E quem ao pé desse mato

tocaia algum animal

que tenha pé e cabeça

pele escama pelo ou pena

encontre mesmo é um poema

afinal.


Paulo Henriques Britto ( Rio de Janeiro, 1951) é poeta, crítico literário  e tradutor.

22/09/2021

Mudando de conversa...(?)





Nas entranhas do corpo, suas, nossas dores viscerais. No pensamento, ideias que se entrelaçam por aderências que bloqueiam seu fluir. Um quebra-cabeça de difícil solução. Xeque-mate! ou morra se não conseguir desvendá-lo.                                                                 

 Um calor que sufoca e queima; um tempo estacionado que corre contra o relógio; que escala labirintos impenetráveis. Uma solidão habitada por fantasmas presentes e passados. Água que não apaga o fogo; fogo que não cauteriza, não queima a dor,  asfixia as palavras e os pensamentos.          Nos bancos da praça palavras que pulam, se estatelam no chão: pisadas, repisadas e pisoteadas por passos apressados, alheios à sua existência. Algumas têm a sorte de serem carregadas pelos pássaros. E cantam, e gorjeiam melodias que nos fazem sonhar. Os olhos pirilampam oásis de sonhos...

15/09/2021

Folhas ao vento




Amar é avermelhar-se de paixão; é corar e descorar-se em simetrias no arco-íris do nadir. E se nada é o mesmo que nadir, nada-se no seco dos olhos afogados na tempestade da dor...

As mãos, como os pés, podem fazer longas caminhadas através do som - deslizam sobre teclados de pianos, de sanfonas; seus dedos dedilham entre as cordas de um violão, nos levam além e alhures sob as cordas de um violino. As mãos são nossos retransmissores cerebrais.

Vou folheando os dedos, passando as páginas, revendo estórias escritas. Por quantas mãos? O ovo ou a serpente? O pensamento voa levando consigo ideias que não têm dono, que se multiplicam, se desdobram, e adquirem outras interpretações, outros significados: mentiras de outrora, hoje transformadas em "verdades". Mãos e pés às vezes dão passos desencontrados, por caminhos tortuosos, mas a caminhada há de prosseguir...!

14/09/2021

Caixa de pandora

 




Deram-me asas de anjo

Mas não aprendi a voar

Deram-me muitos escudos

Não aprendi a me proteger

Deram-me uma voz potente

Mas não fui capaz de gritar

Deram-me um rosto bonito

Mas não fui capaz de me ver

Deram-me armas e forças

Mas não fui capaz de lutar

Deram-me razão e luz

Mas só vi as trevas

Deram-me o brilho das estrelas

Mas fui cadente no brilhar

Deram-me um sentimento

Mas não fui capaz de amar

Então deram-me as palavras.

Foi aí que me encontrei

Virei anjo serafim e voei

Escrevi panfletos incendiários

E lutei e fiz as espadas mortas

Mostrei meu belo rosto

E gritei aos quatro cantos

Faça-se a luz! E de imediato

Vi as trevas estavam mortas

E abriram-se todas as portas

E encontrei os sentimentos

Dentro da caixa de Pandora

Mas um sentimento estava fora

Por isso

 Ainda não aprendi a amar


Marcos Campos, poeta nascido no Rio Grande do Norte.

05/09/2021

João Cabral, per saecula saeculorum...



A nuvem sobre a batalha


Não há nuvem sobre a batalha.
Nas guerras de artes, sim havia.
Hoje na nuvem está a batalha
não a chuva que a ignoraria.

Hoje, ao pensar Joaquim Cardozo
o que me disse lembro, ainda,
dia que os jornais noticiaram
a nuvem caída em Hiroshima

"Não há nuvem sobre a batalha.
Minha imagem foi abolida.
Hoje a nuvem leva navalhas
no que foi chuvada ontem-em-dia.
Da guerra em duas dimensões
em que a vitória era uma colina,
a guerra última foi de dentro:
a nuvem choveu na cozinha".


Poema

Meus olhos têm telescópios
espiando a rua
espiando minha alma
longe de mim mil metros.

Mulheres vão e vêm nadando
em rios invisíveis.
Automóveis como peixes cegos
compõem minhas visões mecânicas.

Há vinte anos não digo a palavra
que sempre espero de mim.
Ficarei indefinidamente contemplando
meu retrato eu morto.


Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos

E se encorpando em tela, entre todas,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, todo um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


João Cabral de Melo Neto, Recife(PE)1920-1999

28/08/2021

Desunindo ideias

 




Nós não dominamos o nosso inconsciente
Sigmund Freud


 
Mudez há em demasia. Quantas línguas em tantas bocas desdentadas, estarão ou foram emudecidas? Estarão mudas as vossas, a minha língua? A babel expandiu-se. A diversidade também, e as desdentadas bocas, com suas línguas de fora, cada vez mais caladas. 
A noite bateu asas, atravessou as janelas do corpo e foi pras calendas gregas.
Todos pó. O vento sopra frio, anunciando "novas" palavras, soltas e desconectadas; sentimentos avulsos são postos à venda no mercado mundial.
O pensamento é mais veloz que a velocidade da luz, e Galileu (1564-1642) provou (a duras penas!), por a+b, que "não somos o centro do Universo". 
Glosa, glossário, verbete, palavrário, palavraria são denominações subjetivas. Transfugir, transfundir? Atresia  é a oclusão da voz, do verbo, da língua? O que existe por trás dos olhos, uma bola de fogo? O mar pode amarrar balsas em bancos de areia; o fogo inflama, clama, chama, reclama da brasa que se espalha sobre a cama dos que vivem deitados sobre a vida em plena luz do dia.

21/08/2021

Sonhando por um sonho

Existem ardis que de tão finos liquidam a si mesmos.

Franz Kafka




E quando a noite cai sobre a floresta do corpo que nos habita uma densa névoa nos envolve cerrando a cortina, nos imobilizando.                         A  imensidão do mar percorre paisagens, descortinando as janelas dos meus olhos para uma viagem sem volta; sonho o sonho daqueles que acordam nus para outros dias. Hoje ardem os pés; amanhã o corpo arderá em chamas, até transformar-se em pó e espalhar-se como poeira pelo Universo. Do outro lado do espelho, sangra a floresta, de dor; do lado transverso, chora uma rabeca evocando outros tempos; tempos de açaizeiros, buritizeiros, baobás, jacarandás e paus-brasis; de sabiás, uirapurus, tico-ticos, asas brancas. O canto da rabeca se desdobra, nos alertando que o espetáculo é finito. Cerraram-se as cortinas e já não há o que aplaudir quando o dia amanhece... Tudo flui e nada permanece, já dizia Heráclito.  

16/08/2021

Cidade prevista

 




Guardei-me para a epopeia

que jamais escreverei.

Poetas de Minas Gerais

e bardos do Alto Araguaia,

vagos cantores tupis,

recolhei meu pobre acervo,

alongai meu sentimento.

O que eu escrevi não conta.

O que desejei é tudo.

Retomai minhas palavras,

meus bens, minha inquietação,

fazei o canto ardoroso,

cheio de antigo mistério

mas límpido e resplendente.

Cantai esse verso puro,

que se ouvirá no Amazonas, 

na choça do sertanejo

e no subúrbio carioca,

no mato, na vila X,

no colégio, na oficina,

território de homens livres

que será nosso país

e será pátria de todos.

Irmãos, cantai esse mundo

que não verei, mas virá

um dia, dentro de mil anos,

talvez mais...não tenho pressa.

Um mundo enfim ordenado,

uma pátria sem fronteiras, 

sem leis e regulamento,

uma terra sem bandeiras, 

sem igrejas nem quartéis,

sem dor, sem febre, sem ouro,

um jeito só de viver,

mas nesse jeito a variedade, 

a multiplicidade toda

que há dentro de cada um.

Uma cidade sem portas,

de casas sem armadilha,

um país de riso e glória

como nunca houve nenhum.

Este país não é meu

nem vosso ainda, poetas.

Mas ele será um dia

o país de todo homem.


Carlos Drummond de Andrade , 31.10.1902 - 17.08.1987

09/08/2021

Entrevista com Machado de Assis







Entre as mais nobres presenças que já tivemos a honra de receber na redação deste nosso vibrante matutino, a de hoje foi ainda mais especial. Com efeito, foi com alegria e júbilo que recebemos nesta madrugada ninguém menos do que o imortal Machado de Assis.


Na entrevista exclusiva que nos concedeu, o Bruxo do Cosme Velho não se esquivou de temas polêmicos como atual política e as agressões do presidente da República. Com sua inerente ironia, respondeu as perguntas com seu estilo enigmático. 


Veja abaixo como foi nossa conversa. 


Migalhas - Escritor, obrigado por vir ao portentoso edifício sede deste nosso poderoso rotativo. Seja bem-vindo.


Machado de Assis - "A imprensa é uma grande invenção."


Migalhas - Você deve estar acompanhando esse imbróglio entre o presidente da República e o ministro Barroso. Que situação difícil, não acha?


Machado de Assis - "Quem pode impedir que o povo queira ser mal governado? É um direito anterior e superior a todas as leis."


Migalhas - Esse jeito do presidente, é muito estranho.


Machado de Assis - "Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito."


Migalhas - Você está querendo dizer que ele...


Machado de Assis - "Não se explica o que é de sua natureza evidente."


Migalhas - Mas e a família participando desse jeito do governo?


Machado de Assis - "A loucura entra em todas as casas."


Migalhas - Como você acha que o Judiciário deve reagir?


Machado de Assis - "Ninguém discute com homem doido."


Migalhas - Quem diria, quando o povo via os olhos azuis dele não imaginava o que poderia vir.


Machado de Assis - "A cor dos olhos não vale nada, a questão é a expressão deles. Podem ser azuis como o céu e pérfidos como o mar."


Migalhas - De fato, é estranha a idolatria dele a torturadores. Isso era um sinal.


Machado de Assis - "Pode-se avaliar um homem pelas suas simpatias históricas; tu serás mais ou menos da família dos personagens que amares deveras."


Migalhas - Azar o nosso passarmos por uma pandemia com um governo desse jeito.


Machado de Assis - "Há dessas ironias do acaso, que dão vontade de destruir o universo."


Migalhas - Onde será que ele quer chegar com esse confronto entre os poderes?


Machado de Assis - "A causa secreta de um ato escapa muita vez a olhos agudos."


Migalhas - O que você acha de o presidente ficar citando provérbios bíblicos?


Machado de Assis - "Jesus Cristo não distribui os governos deste mundo. O povo é que os entrega a quem merece, por meio de cédulas fechadas, metidas dentro de uma urna de madeira, contadas, abertas, lidas, somadas e multiplicadas."


Migalhas - Opa! Então você é a favor do voto impresso? É contra as urnas eletrônicas?


Machado de Assis - "Negar o progresso, que heresia!"


Migalhas - Ah, que susto. E esse semipresidencialismo que voltou à pauta, e que seria uma espécie de parlamentarismo?


Machado de Assis - "Sistema parlamentar, composto às pressas, pode ficar um sistema para lamentar."


Migalhas - Você é contra?


Machado de Assis - "Há coisas que se não dizem."


Migalhas - Mas muita gente está pensando nisso.


Machado de Assis - "Um ódio comum é o que mais liga duas pessoas."


Migalhas - E o que você acha da política?


Machado de Assis - "Contados os males e os bens da política, os bens ainda são superiores."


Migalhas - Mas voltando às investidas presidenciais contra o TSE, o que devemos fazer?


Machado de Assis - "Nem todos os problemas valem cinco minutos de atenção."


Migalhas - Quem vai presidir as próximas eleições será o ministro Alexandre de Moraes. O que acha?


Machado de Assis - "Não se fazem Alexandres na conquista de praças desarmadas."


Migalhas - Não entendemos o exemplo.


Machado de Assis - "Os exemplos não se fizeram senão para ser citados."


Migalhas - Deixa ver se entendemos, você acha que pode haver algum confronto?


Machado de Assis - "Não é em terra que se fazem os marinheiros, mas no oceano, encarando a tempestade."


Migalhas - Mas o presidente ainda tem seguidores.


Machado de Assis - "Ninguém, por ato próprio, se amarra a um cadáver."


Migalhas - Você fala figurativamente, é claro. Mas quem sabe o presidente perceba que está caminhando para sua morte política e mude o rumo.


Machado de Assis - "É duro dizer a um homem que todas as suas esperanças são vãs."


Migalhas - E ainda temos a questão da covid-19, que assusta muito.


Machado de Assis - "Felizes os que podem respirar! bem-aventurados os que não tossem!"


Migalhas - Pois é. Pelo menos estes dias estamos nos divertindo com os jogos olímpicos.


Machado de Assis - "Os dias passam, e os meses, e os anos, e as situações políticas, e as gerações e os sentimentos, e as ideias. Cada olimpíada traz nas mãos uma nova andaina do tempo."


Migalhas - Vamos terminando, agradecidos pela presença. Por fim, qual é nosso futuro?


Machado de Assis - "Quando uma Constituição livre pôs nas mãos de um povo o seu destino, força é que este povo caminhe para o futuro com as bandeiras do progresso desfraldadas."


Migalhas - Uma palavra final aos migalheiros.


Machado de Assis - "Sempre há de triunfar a vida inteligente. Basta que se trabalhe sem trégua."


Obs. Todas as "respostas" machadianas acima são aforismos de autoria do próprio escritor, retirados de sua obra, ipsis litteris. Eles poderão ser encontrados, juntamente com outras duas milhares de frases do imortal, na nova versão (revista e atualizada) das Migalhas de Machado de Assis, agora em dois volumes, as quais serão em breve lançadas. 


Por: Redação do Migalhas

Extraído de: https://www.migalhas.com.br/quentes/349653/entrevista-exclusiva-machado-de-assis-fala-da-atual-situacao-do-pais


03/08/2021

Num piscar de olhos



Esfrego as mãos para com elas caminhar pelas paredes da imaginação; estava fora dos eixos, mas dava para ouvir os murmúrios que delas saíam. É um lugar cheio de ecos aprisionados sob pedras e tijolos, e querem falar. As ruas estão desertas de gente, só ouço o latir dos cães e o ranger do vento tiritando entre as portas da noite. Caminhando com as mãos, vou galgando, pouco a pouco, os degraus das palavras, antes que se tornem brasas e queimem minha língua, travem meus dentes, e mergulhe no silêncio. Abro e fecho meus olhos num movimento pendular entre o sonho e a realidade. Num piscar de olhos acordei!                      Dizem que a língua é como uma cobra d'água, ora mergulha nas águas profundas dos rios que vão desaguar no mar das palavras múltiplas e diversificadas, ora emergem para buscar oxigênio... 

24/07/2021

Fantasmagoria




Voou, voou, pluft! Não era um fantasminha, era uma fantasmagoria. Um bloco de concreto, e na mão uma pena molhada de sangue; e a cada movimento um corte, uma hemorragia de vidas ceifadas. Leviatã?              Uma sociedade mergulhada no medo da morte, um povo que abriu mão de sua liberdade em prol de uma falsa segurança.

18/07/2021

Vestida de Noite



Ana Hatherly



A palavra sempre vem vestida de Noite sem estrelas. Tem seu corpo envolto numa capa tosca na forma, que de tão fina se desmancha nos poros azuis do infinito. A mãe do verbo vem perdendo seus significados nos dicionários; as regras gramaticais caíram da árvore sobre o solo do abandono, diante da banalidade da vida: corpo, folhas e frutos apodrecem nos beirais das ruas entulhadas de carros, de lixo. Sob olhares indiferentes, passos apressados para o vazio.                            O saber transformou-se numa caixa preta?

12/07/2021

Troca-troca



Troquei as máquinas de lavar roupas e louças por um triturador de ervas daninhas. Não foi uma operação muito fácil de realizar, em decorrência das semelhanças entre os entes envolvidos: trigo-falso, discordantes, psicopatas, inseguros, repulsivos, odiosos, execráveis, falsos moralistas, ladrões, fundamentalistas, fanáticos religiosos, estavam todos juntos e misturados. Mesmo assim, resolvi correr o risco; estão agora em processo de centrifugação; vamos ver no que vai dar. Não me surpreenderei com o lixo e a lama que será expelida pelo cano da máquina. Quem sabe restará um rebotalho de esperança...(nem que seja!)

02/07/2021

Reflexões

 




Uma pétala uma pata uma porta: o ferro o ferreiro a ferramenta e a fechadura; o dia o sol a luz o pensamento e a razão; a noite a escuridão o sentimento e a reflexão. Um desencontro entre duas ou mais pessoas: solidão. A queda do muro que te protege apaga tua memória, impede que refaças o caminho de volta. Tijolos amontoados a céu aberto formam um bloco de concreto em teu peito. A casa caiu, o chão se abriu para a boca de uma onça, e muitos correm para ela acreditando ser o paraíso. A mão desobedece, a fenda difunde-se - sangramento das veias  na orla do mar; suas ondulações dançam em sobressaltos, uma pororoca de pensamentos, de ideias que ora se contrapõem, ora se unem. Teu olho burila tua consciência: visões que transbordam num piscar de olhos o nascimento de pequenas flores selvagens.                                          A casa caiu e já não sabes por onde recomeçar. 

Quem és tu?

25/06/2021

Ramargens

 




Brotos que se desprendem das mãos escapam pelos dedos, desmembrando-se em galhos; formam ramos de palavras entrelaçadas de uma árvore quase esquecida. Páginas amarelecidas pela voragem do tempo, folhas secas entre palavras enredadas em longos talos a exibirem espinhos pontiagudos; reproduzem-se em direções opostas. Seu tronco largo e profundo possui raízes que se bifurcam pelo interior da terra; privadas da luz do sol, crescem desordenadamente, formando verdadeiros hieróglifos incompreensíveis, impenetráveis: uma teia de sombras, um tapete transparente, quase invisível. Imagens caleidoscópicas que ofuscam os olhos diante de tanta clareza.                                        A àrvore-Mãe, majestosa e soberana um dia, está isolada de seus filhos; desgarrados de suas origens, tornaram-se vulneráveis e vítimas de aventureiros gananciosos, predadores por excelência. Assim, também as mãos já não conseguem controlar o nascimento dos brotos de palavras: desordenadas e rebeldes diante de tantas ervas daninhas, transformaram-se em ramos, à margem...

17/06/2021

Atalho



Ao passar por uma transversal de palavras escolheu um atalho para alinhar alguns vocábulos de asas caídas. Estavam bastante machucados, cheios de hematomas, devido a uma discussão que tiveram com um grupo de expressões vulgares. Após alojá-los convenientemente num caderno, arrancou-lhes as penas ensanguentadas, envolveu-os com uma fina camada de vocativo carinho, para, em seguida, derramar sobre eles um balde de adjetivos demonstrativos, afim de protegê-los da vulgaridade de certos compêndios virtuais tão em voga nas redes "sociais". 

08/06/2021

Criaturas mínimas



Subiu o morro como quem não quer nada. Queria arrebentar a cara do Sol, que andava de caso com a Lua em plena luz do dia! Um meteoro caiu sobre a face da Terra estilhaçando as vidraças do planeta. Foram cacos por todos os lados; bocas foram fechadas, línguas arrancadas, corações despedaçados.                                                                                    Quando olhou lá do alto, percebeu a enorme pequenez da cidade, a miniaturização das criaturas. Uma densa névoa atravessou os  seus olhos, não viu mais nada...! 

03/06/2021

Da incompletude

 



Todos sabemos que a nossa época é profundamente

bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao

máximo de civilização. 

Antonio Cândido em O direito à Literatura


Com a cara achatada nos polos e dilatada no equador, arredondo os dias para não cair no planisfério dos obtusos; os olhos tentam ampliar cada vez mais sua visão de mundo, perscrutando a diversidade de ângulos que a vida oferece a este planeta. Tenho pensado no como ocorrem as conexões sinápticas do cérebro com o ambiente que nos rodeia. Por que existem alguns seres que são totalmente destituídos de cérebro, incapazes de raciocinar, de refletir sobre qualquer coisa ou situação?      A diversidade planetária é infinita. Por exemplo, o parasita é um organismo(ou indivíduo), que se nutre do sangue ou da seiva de outro ser; é aquele que vive às custas dos outros; a ameba, é um protozoário unicelular, sem cérebro, e que, não tendo capacidade para produzir seu sustento, alimenta-se de seres vivos. Nas sociedades constituídas de seres humanos supostamente pensantes, podemos também encontrar criaturas completamente desprovidas de cérebros. Um bom exemplo disso, é o psicopata, indivíduo perverso, que sofre de distúrbios psíquicos que afetam sua forma de interagir socialmente. Seu comportamento é irregular e antissocial; em sua aparência física, apresenta as mesmas características dos outros, mas em suas atitudes atuam como os vírus, agentes infecciosos, acelulares; invisíveis a olho nu, são capazes de destruir toda a colônia de células saudáveis. Sob uma aparência "normal", o psicopata é capaz de conduzir toda uma sociedade à morte, ao caos social. 

31/05/2021

Machado de Assis e as vacinas




Crônica, 9 de dezembro de 1894

“Tudo tende à vacina. Depois da varíola, a raiva; depois da raiva, a difteria; não tarda a vez do cólera-morbo.

O bacilo-vírgula, que nos está dando que fazer, passará em breve do terrível mal que é, a uma simples cultura científica, logo de amadores, até roçar pela banalidade. (…)

Todas as moléstias irão assim cedendo ao homem, não ficando à natureza outro recurso mais que reformar a patologia.

Não bastarão guerras e desastres para abrir caminho às gerações futuras; e demais a guerra pode acabar também, e os próprios desastres, quem sabe? obedecerão a uma lei, que se descobrirá e se emendará algum dia.


Sem desastres nem guerras, com as doenças reduzidas, sem conventos, prolongada a
velhice até às idades bíblicas, onde irá parar este mundo? Só um grande carregamento, ó doce mãe e amiga Natureza; só um carregamento infinito de moléstias novas.


Mas a vacina não se deve limitar ao corpo; é preciso aplicá-la à alma e aos costumes, começando na palavra e acabando no governo dos homens.

Já a temos na palavra, ao menos, na palavra política. Graças às culturas sucessivas, podemos hoje chamar bandido a um adversário, e, às vezes, a um velho amigo, com quem tenhamos alguma pequena desinteligência. Está assentado que bandido é um divergente. Corja de bandidos é um grupo de pessoas que entende diversamente de outra um artigo da Constituição.

Quando os bandidos são também infames, é que venceram as eleições, ou legalmente, ou aproximativamente. (…)

Conhecido o princípio, sabido que tudo deriva de um micróbio, inclusive o vício e a virtude, obtém-se pelo mesmo processo a eliminação de tantos males.

O boato tem sido descomposto de língua e de pena, é um monstro, um inimigo público, é o diabo, sem advertirem os autores de nomes tão feios, que o boato é a cultura atenuada do acontecimento. Daqui em diante a história se fará com auxílio da bacteriologia.


As eleições, – uma das mais terríveis enfermidades que podem atacar o organismo social, – perderam a violência, e dentro em pouco perderão a própria existência nesta cidade, graças à cultura do respectivo bacilo.

Aposto que o leitor não sabe que tem de eleger no último domingo deste mês os seus representantes municipais? Não sabe. Se soubesse, já andaria no trabalho da escolha do candidato, em reuniões públicas, ouvindo pacientemente a todos que viessem dizer-lhe o que pensam e o que podem fazer. (…)”