DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

26/12/2012

O mundo que vencí deu-me um amor

 
O mundo que vencí deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que vencí deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo,
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que vencí deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória...
 
 
MÁRIO FAUSTINO,  Teresina (PI) - 1930-1962

23/12/2012

O último voo do poeta Lêdo Ivo







 
Planta de Maceió
 
 
O vento do mar rói as casas e os homens.
Do nascimento à morte,
 os que moram aqui andam sempre cobertos
 por leve mortalha de mormaço e salsugem.
 Os dentes do mar mordem, dia e noite,
 os que não procuram esconder-se no ventre dos navios
e se deixam sugar por um sol de areia.
Penetrada nas pedras,
 a maresia cresta o pêlo dos ratos perdulários que,
 nos esgotos, ouvem o vômito escuro do oceano esvaído em bolsões de mangue
e sonham os celeiros dos porões dos cargueiros
. Foi aqui que nasci,
 onde a luz do farol cega a noite dos homens e desbota as corujas.
A ventania lambe as dragas podres,
entra pelas persianas das casas sufocadas e escalavra as dunas mortuárias
onde os beiços dos mortos bebem o mar.
Mesmo os que se amam nesta terra de ódios
são sempre separados pela brisa que semeia a insônia nas lacraias
e adultera a fretagem dos navios.
Este é o meu lugar,
 entranhado em meu sangue como a lama no fundo da noite lacustre
. E por mais que me afaste,
 estarei sempre aqui e serei este vento
 e a luz do farol, e minha morte vive na cioba encurralada.
 


******


 

A queimada

 
Queime tudo o que puder :
  as cartas de amor as contas telefônicas
o rol de roupas sujas as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência e anuncia a arteriosclerose
os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.
Seja como os lobos :
 more num covil e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.
Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita.



****** 
 
 
O voo dos pássaros
 
Os áridos pássaros que mudam as estações
não vieram nunca, embora eu os esperasse.
Acaso falam os homens do que viram?
Silenciosos são os lábios dos homens.
Grito ou palavra de amor não comovem
as pedras empedernidas pelo tempo.
Eram secos pássaros.
E o céu, que é plumagem, crepita.
Nem nos que voam nem nos que permanecem.
Não me demorei sobre nenhum pássaro.
Voando, eram a velha canção da infância morta
para mim, que sempre vi o que não existe
e eternamente verei o que jamais existirá.
Em voo, como os anos, a vida, o tempo...
Nada imaginei que pudesse ser admitido
pelos que não entendem uma teoria de pássaros.

 
LÊDO IVO,  poeta, romancista, cronista, ensaísta e tradutor, nasceu em Maceió(AL), em fevereiro
de 1924, e faleceu em Madri (Espanha), na madrugada de 23-12-2012 aos 88 anos de idade.


15/12/2012


 
 
O que não me contam, eu escuto atrás das portas. O que não sei advinho e, com sorte, você advinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba contecendo.
 
 
DALTON TREVISAN,  em  Novelas nada exemplares.

12/12/2012

A sombra que deseja e escreve


 
 
Sou a sombra que deseja e sou a sombra que te escreve
entre a saliva suave e o metal da alegria.
Giram as laranjas de fogo, as gargantas as ondas.
O teu corpo é um arbusto violento, um animal vibrante.
Quero ser a espuma dos teus ombros, o canto dos teus músculos.
 
Toco a madeira dos teus flancos límpidos, bebo
as sílabas de um pequeno bosque, ando na sombra
do teu sangue, escrevo os latidos do teu sexo,
 escrevo as últimas lâmpadas do teu corpo,
acaricio sombras e sombras entre espumas.
 
Escrevo agora a sombra mais feliz das veias sossegadas.
Abrem-se as portas delicadas de um jardim.
A substância mais frágil é o silêncio do corpo.
Leio as sílabas lisas do repouso
Estou no centro de uma estrela sou o seu obscuro ardor.
 
 
ANTONIO RAMOS ROSA,  em  Animal olhar - Escrituras, São Paulo, 2005

09/12/2012

Janelas


 
 
Recordações inumeráveis
correm silenciosamente
nas margens do rio
(dos olhos dos homens)
 
e os últimos repuxos
e as últimas flores
secam inexplicavelmente
nos olhos do homem.
 
 
 
A poesia da noite
 
 
Sobre o pano da mesa e nos jarros de um gosto improvável
colocaram flores e gestos de parentes extintos
que um microfone cuidadosamente disfarçado
irradiou toda a noite para muito longe.
 
 
JOÃO CABRAL DE MELO NETO,  Recife(PE) - 1920-1999.

06/12/2012

Dois poemas de Oscar Niemeyer - 1907-2012

 
 
 
 
 
"Sentia-me longe de tudo. De minha família, dos amigos, das montanhas, mares e praias do meu país. Precisava voltar. Certo dia, não sei porquê, esse afastamento me pareceu mais doloroso. E escrevi estes versos, que preguei na parede do nosso escritório:"
 
Estou longe de tudo
de tudo que gosto, dessa terra tão linda que me viu nascer
. Um dia eu me queimo, meto o pé na estrada,
é aí, no Brasil, que eu quero viver.
Cada um no seu canto, cada um no seu teto,
a brincar com os amigos, vendo o tempo correr.
Quero olhar as estrelas, quero sentir a vida,
é aí, no Brasil, que eu quero viver.
Estou puto da vida, esta gripe não passa,
de ouvir tanta besteira não me posso conter.
Um dia me queimo, e largo isto tudo,
é aí, no Brasil, que eu quero viver.
Isto aqui não me serve, não me serve de nada,
a decisão está tomada, ninguém me vai deter
Que se foda o trabalho, e este mundo de merda,
é aí, no Brasil, que eu quero viver.
 
 
*****

 
 

Não é o ângulo reto que me atrai
nem a linha reta, dura, inflexível,
criada pelo homem.
O que me atrai é a curva livre e sensual,
a curva que encontro nas montanhas do meu país,
no curso sinuoso dos seus rios,
nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida.
De curvas é feito todo o universo,
o universo curvo de Einstein.

05/12/2012

A beleza





NUMA CERTA cidade o arco-íris apareceu e nunca mais se foi embora. Durante um ano permaneceu no mesmo sítio do céu. Tornou-se aborrecido.
Um dia, finalmente, o arco-íris desapareceu e o céu ficou cinzento escuro por completo. As crianças dessa cidade, excitadas, apontavam para o céu cinzento e gritavam uns para os outros: olha, que bonito!
 
 
 
Liberdade de escolha
 
 
ERA UMA  livraria que vendia um único livro. Havia cem mil exemplares numerados do mesmo livro. Como em qualquer outra livraria os compradores demoravam-se, hesitando no número a escolher.
 
 
 
Gonçalo M. Tavares,  (Angola, 1970-   ), em O Senhor Brecht - Casa da Palavra.

02/12/2012

Leitura das pálpebras


 
 
Quem lê no rosto dos
homens, não lê os homens:
mas os sonhos. O que
parece imaculado, se intumesce,
cavando olhos, óculos, bando
de andorinhas sobre os cílios.
Quem lê  no rosto, não vê
o que anda resvalando
dentre os penhascos do ser
e a sua alma chegando.
E o mundo não sabe ler
os homens, , não sabe nem
por onde vão os sonhos,
por onde os seus sonhos ve(e)m.
 
 
Carlos Nejar, em Fúria Azul - Antielegias, - Ateliê Editorial

26/11/2012

Festa na aldeia


Henri Matisse
 
 
Correm pelos vales do nada subindo em montes vazios tentando encontrar o Sol.
São magras, sulcadas de caminhos azuis de encruzilhadas vias expressas  as mãos  que conduzem ao castelo da desilusão. Demonstram friamente o desencanto dessa aldeia habitada por  ensimesmadas  e
enrijecidas criaturas moldadas  pelo gelo que sobre elas cai lenta e inexoravelmente.
Bonecos de neve vão se formando sobre essa paisagem urbana criando uma imensa vitrine de seres inanimados.  Nas aldeias vizinhas muitos já se organizam desenfreadamente em busca de lenha para
suas  fogueiras de vaidades! Haverá fogos de artifícios rojões e ranger de dentes regados a Moet et Chandon  e seus estampidos.
E todos cantarão alegremente  gingo bel  erguendo as mãos aos céus para que tudo permaneça como sempre esteve.
 
Amendoim!!!

21/11/2012

A razão da semelhança

 
Henri Matisse
 
 
Na grande sala da memória está um rosto ausente
há apenas um leito
e um homem sem rosto.
 
Um rosto é uma direção imprecisa.
 
Um corpo é para ser tocado
é uma suíte de dança
uma variação de um tema em fuga.
 
Um rosto é algo que se espera
na inquietação de um corpo
um ângulo
um poliedro
em que os diedros se interceptam.
 
A projeção da vertical sobre um plano
é apenas um ponto
um ponto em fuga
e um leito fala de um corpo
de braços abertos
de ângulos retos.
 
O amor é uma oposição de ângulos
uma razão de semelhança
e o mundo é apenas um rosto
um rosto em fuga.
 
A geometria é a matéria do mundo.
 
Ana Hatherly,  em A idade da escrita, 1998.
 


19/11/2012

 
 
Desenho de Ana Hatherly

O poema é solitário
 
Paul Célan
 
O pequeno gesto de um poema
pode abrir uma perspectiva infinita?
 
Quantas vezes será preciso
bater com a cabeça
para vislumbrar a graça original?
 
Tudo o que podemos não podemos
Tudo o que fazemos não o fazemos sós
 
A palavra é um duro muro:
não se move a suplicantes rogos
 
O poema isola o poeta
afirma-se à margem de si próprio
 
 
***
 
Os poemas são uma peregrinação
uma crença
que impele o poeta ao corpo a corpo
com o abismo que o cerca
 
A batalha é infinita
assenta no interesse do acaso
do ocaso
dos infinitos mortos
em cujos ombros subimos
incansáveis
 
Qual é o prazer do caminhante
senão
o de encontrar a invisível ponte
a ambição de ousar?
 
A nostalgia é um erro da paixão
O poema é um rio de vozes (grifo meu)
 
 
Ana Hatherly, Porto (1929-   ), em O pavão negro, 2003.

16/11/2012

O ofício do poeta

Paul Cézanne
 
"Poeta" pertence àquela categoria de palavras que, durante um certo tempo, caíram enfermas, em desamparada exaustão: eram evitadas e dissimuladas - seu uso expunha-nos ao ridículo - e foram tão exauridas que, enrugadas e feias, transformaram-se em sinal de perigo. Aquele que, não obstante, se punha a exercer a atividade - que, como sempre, prosseguiu existindo - chamavam a si próprio "alguém que escreve".
Ter-se-ia podido pensar, então, que se tratava de renunciar a uma falsa pretensão, de descobrir novos critérios, de se tornar mais rigoroso consigo e, particularmente, de evitar tudo o que pudesse levar a êxitos indignos. Na realidade, aconteceu o contrário: os métodos para causar sensação foram conscientemente desenvolvidos e intensificados justamente por aqueles que, aos golpes, rechaçavam sem piedade a palavra "poeta" [....] Outros, porém, que não eram suficientemente estéreis para se esgotarem em uma proclamação, que  conceberam livros amargos e talentosos, muito em breve passaram a gozar de grande prestígio e, como  "alguém que escreve", faziam justamente aquilo que antes os poetas costumavam fazer: em vez de se calarem, continuavam escrevendo sempre o mesmo  livro. [.............].
O que ocorre, na realidade, é que ninguém será hoje um poeta se não duvidar seriamente de seu direito de sê-lo. Quem não vê o estado do mundo em que vivemos dificilmente terá algo a dizer sobre ele. O perigo de que é alvo, antes preocupação central das religiões, deslocou-se para o aquém. O ocaso do mundo, experimentado mais de uma vez, é visto com frieza por aqueles que não são poetas; alguns há que calculam suas chances de fazer disso o seu negócio e engordar cada vez mais com ele..[...........................................].
Talvez valha o esforço refletir se nesta situação do mundo existe algo por meio do qual os poetas, ou aquilo que até o momento se considera como tal. possam fazer-se úteis. De qualquer modo, apesar de todos os reveses que a palavra "poeta" sofreu, algo restou de sua pretensão. A literatura pode ser o que for, mas uma coisa não é - assim como não o é a humanidade que a ela ainda se agarra: a literatura não é algo morto. No que consisitiria então a vida daquele que hoje a representa? O que teria para oferecer?
 
Elias Canetti,  trechos do discurso proferido em Munique, em 1976. É autor de vários livros, entre os quais Auto de fé, A língua absolvida, Uma luz no meu ouvido, O jogo dos olhos.(trilogia autobiográfica) Em 1981 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Nasceu na Bulgária, mas aos 6 anos foi com a família para a Inglaterra, mudando-se mais tarde para Viena. A partir de 1938 passou a viver entre Londres e Zurique para fugir do nazismo. (1905-1994)
 


14/11/2012

Quando elas despertam


 
procura guardá-las, Poeta
por poucas que sejam de guardar
do teu amar as visões.
Coloca-as no meio, ocultas
nas tuas frases.
Procura detê-las, Poeta,
quando em tua cabeça elas despertam,
de noite ou na luz crua do meio-dia.
 
 
Kontantinos Kaváfis,  Alexandria, Egito - 1863-1933


12/11/2012


O Pensador, de Rodin (há 117 anos!)


O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
  E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido  a cada momento
Para a eterna novidade do mundo.
 
Fernando Pessoa

10/11/2012

No trem, pelo deserto



 
As vozes frias
Anulam toda a chance de existência.
Jogam cartas terríveis
Batem fotografias perigosas
Não temem. Falam. Passam,
Na chacina do raro ostentam sua miséria.
 
Ninguém veste de verde. Um só
Parece vivo, aberto - e esse dorme.
As aves lentas voam seus presságios
E a brisa morna engendra flores duras
Na secura dos cactos.
 
Alguém pergunta: "Estamos perto?" E estamos longe
E nem rastro de chuva. E nada pode
Salvar a tarde.
 
(Só se um milagre, um touro
Surgisse dentre os trilhos para enfrentar a fera
Se algo fértil enorme aqui brotasse
Se liberto quem dorme se acordasse).
 
 
Mário Faustino, em O homem e sua hora E outros poemas. - Teresina(PI), 1930-1962

05/11/2012

O Tigre


 
 
Tigre! Tigre! chama pura
Nas florestas, noite escura,
Que olho ou mão imortal cria
A tua terrível simetria?
De que abismo ou céu distante
Vem tal fogo coruscante?
Que asas ousa nesse jogo?
E que mão se atreve ao fogo?
Que ombro e arte te armarão
Fibra a fibra o coração?
E ao bater ele no que és,
Que mão terrível? Que pés?
E que martelo? que torno?
E o teu cérebro, em que forno?
Que bigorna? Que tenaz?
Pro terror mortal te traz?
 
Quando os astros lançam dardo
E seu choro os céus põem pardo
Vendo a obra ele sorrí?
Fez o anho e fez a ti?
Tigre, tigre, chama pura
Nas florestas, noite escura,
Que olho ou mão imortal cria
A tua terrível simetria?
 
 
William Blake,  Londres (1757-1827)

02/11/2012

O sermão do diabo (reeditado)



 
NEM SEMPRE RESPONDO POR PAPÉIS VELHOS; mas aqui está um que parece autêntico;e, se não o é, vale pelo texto, que é substancial. É um pedaço do evangelho do Diabo, justamente um sermão da montanha, à maneira de S.Mateus.
 Não se apavorem as almas católicas.Já Santo Agostinho dizia que "a igreja do Diabo imita a igreja de Deus". Daí a semelhança entre os dois evangelhos. Lá vai o do Diabo:
1. E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por nome Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus discípulos.
2. E ele, abrindo a boca, ensinou dizendo as palavras sequintes
3. Bem-aventurados aqueles que embaçam porque eles não serão embaçados.
4. Bem-aventurados os afoitos, porque eles possuirão a terra.
5. Bem-aventurados os limpos das algibeiras, porque eles andarão mais leves.
6. Bem-aventurados os que nascem finos, porque eles morrerão grossos.
7. Bem-aventurados sois,quando vos injuriarem e disserem todo o mal por meu respeito.
8. Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra.
9. Vós sois o sal do money market.E se o sal perder a força, com que outra coisa se há de salgar?
10. Vós sois a luz do mundo.Não se põe uma vela acesa debaixo de um chapéu, pois assim se perdem o chapéu e a vela. [.................]
14. Também foi dito aos homens:
Não matareis a vosso irmão, nem a vosso inimigo, para que não sejais castigados.Eu digo-vos que não é preciso matar a vosso irmão para ganhardes o reino da terra;basta arrancar-lhe a última camisa. [..........]
20. Não queirais guardar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, e donde os ladrões os tiram e levam.
21. Mas remetei os vossos tesouros para algum banco de Londres, onde a ferrugem, nem a traça os consomem, nem os ladrões os roubam, e onde ireis vê-los no dia do juízo.


Machado de Assis.
 

29/10/2012

Do não sonhar








De resto eu não sonho, eu não vivo, sonho a vida real. Todas as naus são naus de sonho logo que esteja em nós o poder de as sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha, o que fere o agente é não sonhar quando vive. Eu fundí numa cor uma de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne. Por mais que se viva a vida em plena, desmesurada e triunfante acção, nunca desaparecem o do contacto com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer.
Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.
O Universo, a Vida - seja isso real ou ilusão - é de todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo - ou, pelo menos, pode conceder-se vendo-o e possuindo-o e isso é []
Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ser eu possuir. E se do mundo exterior o meu vê-lo difere de como outros o veem, isso vem de que do sonho meu eu ponho em vê-lo, sem querer, do que do sonho meu se cola a meus olhos e ouvidos.


Fernando Pessoa,  em  Livro do Desassossego


26/10/2012

Olhos nus







João Rosa não chegou a bater à porta. Irreconhecível, Clarice saiu de casa, irrompeu para o mundo, adolescente e dona de si mesma, como se a rua fosse o seu natural território.
- Ah, João...agora eu ía sair.
- Vinha buscar os meus livros.
- Pode vir amanhã, agora não me dá jeito.
O que quer que ele fosse dizer não tinha importância: Clarice tinha pressa, como só pode ter quem se esqueceu de viver. Por mais breve que seja esse esquecimento ele dura sempre demasiado.
- Bom, eu  precisava realmente dos meus livros...
Clarice parou. Deu uns passos na direção do ex-companheiro, estacou bem próximo dele. E contemplou-o, inquisitiva, antes de falar:
- É mesmo os livros que quer?
Então, olhos nos olhos, se deu o impensável. João Rosa, encartado caçador de mulheres, não foi capaz de enfrentar Clarice. Rosto baixo, pálpebras tremeluzentes, em véspera de lágrima.
- Onde vai, Clarice?
- Quem pergunta? É você?
- Por favor, Clarice: vai ter com alguém?
Ela não respondeu. Flutuava em seus lábios um hastear de feliz confiança. Pousou o braço no ombro dele, consoladora.
- Quem sabe?
E virou as costas, cruzando a rua e afastando-se no outro lado do passeio. Escutou-se então, o grito rouco de Rosa:
- Clarice, volte...eu não estou a ver.
O tom era de desespero. Ela parou, deu meia volta e atravessou, de volta, a estrada.
- Eu estou cego, Clarice!
- Você apenas está chorando, meu querido.
- Chorando, eu?
- Eu sei. Porque esses, no seu rosto, são os meus olhos.
E lágrimas que não eram suas desceram como gotas de chuva em vidro de janela.


 
Mia Couto em Dez contos para canções de Chico Buarque


24/10/2012

Flor nacional


 
 


Toda a gente diante da vitória-régia fica atraído, como Saint-Hilaire ou Martius, ante o Brasil. Mas vão pegar a flor pra ver o que sucede! O caule e as sépalas, escondidos na água, espinham dolorosamente. A mão da gente se fere e escorre sangue. O perfume suavíssimo que encantava de longe, de perto dá náusea, é enjoativo como o que. E a flor, envelhecendo depressa, na tarde abre as pétalas centrais e deixa ver no fundo um bandinho nojento de besouros, cor de rio do Brasil, pardavascos, besuntados de pólen. Mistura de mistérios, dualidade interrogativa de coisas sublimes e coisas medonhas, grandeza aparente, dificuldade enorme, o melhor e o pior ao mesmo tempo, calma tristonha, ofensiva, é impossível a gente ignorar que a nação representa essa flor...


Mário de Andrade - (1893-1945) - Crônica publicada no "Diário Nacional", de 07/01/1930- São Paulo, Duas Cidades - 1976

23/10/2012



 
 
 
Canção,  não digas  mais;  e  se  teus  versos
 
À pena  vêm  pequenos,
 
Não queiram de ti mais,  que  dirás  menos.
 
 
Luís de Camões

20/10/2012

Dos objetos





"Portrait", de Mozart-Armand
 
 
Em vão é que as coisas padecem.
Os quadros, as cadeiras, os lustres, os relógios,
os espelhos da casa em que moramos,
os ínfimos objetos que nos cercam, todos
permanecem enfermos
se nada deles é fruído ou tocado
por um par de asas.
 
Nos brancos desvãos do lar,
os utensílios de que nos servimos
são sombras palpáveis: a forma, o espanto.
 
Os pés reprimem um piso de tacos,
a mão remove a faca, o pente, a pinça
que a gaveta guarda,  difícil: nada
do que façamos infunde à matéria a dança
 de que necessita.
 
 
Valder C. Magalhães Jr.


16/10/2012

O azul



 
 
De um infinito azul a serena ironia
Bela indolentemente abala como as flores
O poeta incapaz que maldiz a poesia
No estéril areal de um deserto de Dores.
 
 
Em fuga, olhos fechados, sinto-o que espreita,
Com toda a intensidade de um remorso aceso,
A minha alma vazia. Onde fugir? Que estreita
Noite, andrajos, opor a seu feroz desprezo?
 
 
Vinde, névoas! Lançai a cerração de sono
Sobre o límpido céu, num farrapo noturno,
Que afogarão os lodos lívidos do outono,
E edificai um grande teto taciturno.
 
 
E tu, ó Tédio, sai dos pântanos profundos
Da desmemória, unindo o limo aos juncos suaves,
Para tapar com dedos ágeis esses fundos
Furos de azul que vão fazendo no ar as aves.
 
 
Que sem descanso, enfim, as tristes chaminés
Façam subir de fumo uma turva corrente
E apaguem no pavor de seus turvos anéis
O sol que vai morrendo amareladamente!
 
 
- O Céu é morto. - Vem e concede, ó matéria,
O olvido do ideal cruel e do Pecado
A um mártir que adotou o leito de miséria
Ao rebanho feliz dos homens reservado,
 
 
Pois quero, desde que meu cérebro vazio,
Como um pote de creme inerme ao pé de um muro,
Já não sabe adornar a ideia-desafio,
Lúgubre bocejar até o final obscuro...
 
Em vão. O Azul triunfa e canta em glória
Dentro dos sinos. Sim, faz-se voz para sus-
Pender-nos  no terror de sua vil vitória,
Rompendo o metal vivo em angelus de luz!
 
 
Ele rola na bruma, antigo, lentamente
Galga tua agonia e como um gládio a sul-
Ca. Onde fugir? Revolta pérfida e impotente,
O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul!
 
 
Stephane Mallarmé, Paris (1842-1898)


12/10/2012

Ode



 
 
 
ó
 
os doces velhinhos
que governam o mundo(e eu e
você se a gente não abrir o
olho)
 
 
ó
 
os queridos benévolos tolos
Ele-e Ela-
peças de museudecera cheias
de ideias mortas(os oh
 
 
quintilhões de incríveis
tremebundos pios desdentados
sempre-tão-interessados-
nos-negócios-alheios
 
 
bípedes) OH
os chatos
caros supérfluos velhos b
o
 
des
 
 
 
e. e. cummings,  EUA, 1894-1962 -  poem(a)s
Tradução de Augusto de Campos

10/10/2012

76 anos da extradição ilegal de Olga Benário Prestes para a Alemanha nazista pelo governo de Getúlio Vargas


No dia 23 de setembro de 1936, grávida de sete meses, Olga Benario Prestes era extraditada para a Alemanha nazista pelo governo de Getúlio Vargas. Junto com Elise Ewert, outra comunista e internacionalista alemã que participara da luta antifascista no Brasil, foi embarcada à força, na calada da noite, no navio cargueiro alemão La Coruña, viajando ilegalmente, sem culpa formada, sem julgamento nem defesa. O comandante do navio recebeu ordens expressas do cônsul alemão no Brasil para dirigir-se direto a Hamburgo, sem parar em nenhum outro porto estrangeiro, pois havia precedentes de portuários espanhóis e franceses resgatarem prisioneiros deportados para a Alemanha, quando tais navios aportavam à Espanha republicana ou à França. Após longa e pesada travessia, as duas prisioneiras foram conduzidas incomunicáveis para a prisão de mulheres de Barnimstrasse, em Berlim, onde Olga deu à luz sua filha Anita Leocadia, em 27 de novembro de 1936. Numa exígua cela dessa prisão, submetida a regime de rigoroso isolamento, conseguiu criar a filha até os 14 meses, graças à ajuda, em alimentos, roupas e dinheiro, que recebeu da mãe e da irmã de Luiz Carlos Prestes. Após campanha internacional, que atingiu vários continentes, pela libertação da esposa de Prestes e de sua filha, o governo de Hitler, pressionado com a força que a campanha ganhara, entregou a criança à avó paterna (Leocadia Felizardo Prestes). A campanha não conseguiu, contudo, a libertação de Olga. Depois da prisão de Berlim, ela passaria pelos campos de concentração de Lichtenburg e Ravensbrück, onde, juntamente com milhares de outras prisioneiras, seria submetida a trabalhos forçados para a indústria de guerra da Alemanha nazista. A situação de Olga seria particularmente penosa, pois carregava consigo duas marcas consideradas fatais: a de comunista e a de judia. Em abril de 1942, Olga Benario Prestes foi assassinada numa câmara de gás do campo de concentração de Bernburg. As cartas que Olga conseguiu escrever para a família e o testemunho de suas companheiras de infortúnio, tanto no Brasil como na Alemanha, revelam sua firmeza inabalável de caráter - a convicção profunda na justeza dos ideais revolucionários que abraçara e, em particular, seu espírito de solidariedade e justiça. Olga jamais se entregou ao desespero nem ao conformismo, lutou até o último momento de sua curta vida, infundindo coragem e confiança no futuro em todos que a rodeavam.
"Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo. Prometo-te agora, ao despedir-me, que até o último instante não terão por que se envergonhar de mim. Quero que entendam bem: preparar-me para a morte não significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue. Mas, no entanto, podem ainda acontecer tantas coisas... Até o último momento manter-me-ei firme e com vontade de viver."


(Trecho da última carta de Olga ao marido Luiz Carlos Prestes e à filha Anita Leocadia Prestes)
 

28/09/2012

Escaramuças




 
 



Escondemos as nossas identidades marcadas com o selo da aprovação. Mas a verdade escapa em nossos sonhos.

***
 
 

Aquilo que proibimos a nós mesmos, pagamos um bom dinheiro para admirar num teatro, num cinema ou nas páginas de um livro.
 
 
 
Salman Rushdie, Bombaim, Índia

27/09/2012

Dor


 
 



Passa-se um dia e outro dia
  À espera que passe a Dor,
  E a Dor não passa, e porfia,
  Porque trás dia, outro dia
Que traz Dor inda maior;
  Porque embora a Dor aflita
  Calasse há muito seus ais,
  Ainda, fundo, palpita
  Uma outra Dor que não grita:
  A Dor do que não dói mais
.
 
Francisco Bugalho, Dispersos e Inéditos -   Portugal - 1905-1949

25/09/2012

Dilema





Eu tenho sonhos que espelham a minha alma
Mas deixam a minha mordacidade louca
E a minha sonolência rouca e calma
Sentadas à soleira da minha imaginação
 
 
 
As lágrimas descompassadas rolam quietas
E riem dos meus demônios e fracassos
Os meus medos não permitem, nas longas noites
despertas,
Que a vida me leve em seus braços!
 
 
 
Ner Cabrera Lopez,  em  A Lenda - Editora Alley, 2005


23/09/2012

A cortesia dos cegos






 
 
O poeta lê seus versos para os cegos.
Não esperava que fosse tão difícil.
Sua voz fraqueja.
Suas mãos tremem.
Ele sente que cada frase
está submetida à prova da escuridão.
Ele tem que se virar sozinho,
sem cores e luzes.
Uma aventura perigosa
para as estrelas da poesia,
para as manhãs, o arco-íris, as nuvens, os neons, a lua,
para o peixe tão cintilante sob a água
e o falcão tão alto e quieto no céu.
Ele lê - pois já não pode parar-
sobre o menino de casaco amarelo num campo verde,
telhados vermelhos que se contam no vale,
números irrequietos na camisa dos jogadores
e a desconhecida, nua, na fresta da porta.
Ele gostaria de omitir - embora seja impossível -
todos os santos no teto da catedral,
a mão que acena do trem em partida,
a lente do microscópio, o anel e seu brilho,
as telas de cinema, os espelhos, os álbuns de
fotografia.
Mas é enorme a cortesia dos cegos,
admirável a sua compreensão, a sua grandeza.
Eles escutam, sorriem e aplaudem.
Um deles até se aproxima
com o livro de cabeça para baixo
pedindo um autógrafo invisível.



Wislawa Szymborska, Polônia (1923-2012)


17/09/2012

Das contradições do tempo


Saí fechando a porta, ouvindo os tiquetaques todos. Olhei para trás, para a vitrine. Ele me observava detrás da divisória. Havia uns doze relógios na vitrine, marcando doze horas diferentes, cada um deles com a mesma convicção determinada e contraditória que o meu manifestava, mesmo sem ponteiros. Um contradizendo o outro. Eu ouvia o meu, ainda a tiquetaquear no meu bolso, muito embora ninguém o visse, muito embora mesmo se o vissem ele não poderia dizer nada a ninguém.
E assim eu disse a mim mesmo para escolher aquele. Porque o pai disse que os relógios matam o tempo. Ele disse o tempo morre sempre que é medido em estalidos por pequenas engrenagens, é só quando o relógio para que que o tempo vive. Os ponteiros estavam estendidos, desviando-se um pouco da horizontal, formando um leve ângulo, como uma gaivota planando no vento.
William Faulkner, em O Som e a Fúria

12/09/2012

O relógio




Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.

Se são jaulas não é certo;
mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.

Umas vezes, tais gaiolas
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.

Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;

e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade
João Cabral de Melo Neto

11/09/2012

Los Heraldos Negros






OS ARAUTOS NEGROS



César Vallejo

Tradução de Fernando Mendes Vianna





Há golpes na vida tão fortes... Eu nem sei!

Golpes como do ódio de Deus; como se ante eles

a ressaca de quanto foi sofrido

se empoçara na alma... Eu nem sei!



São poucos, porém são... Abrem sulcos escuros

no rosto mais fero e no lombo mais forte.

Serão talvez os potros de bárbaros átilas;

ou os arautos negros que nos manda a Morte.



São as caídas fundas dos Cristos da alma,

de alguma fé adorável que o Destino blasfema.

Esses golpes sangrentos são as crepitações

de algum pão que na porta do forno se queima.



E o homem... Pobre... pobre! Volve os olhos, como

quando por sobre os ombros nos chama uma palmada;

volve os olhos loucos, e todo o vivido

se empoça, como charco de culpa, na mirada.



Há golpes na vida tão fortes... Eu nem sei!

10/09/2012

08/09/2012

A palavra misteriosa


Sobe da sombra mais opaca
a tua figura radiosa
oh palavra misteriosa!
No obscuro pulsar de cada ato
reconstróis tudo por ausência
e o sentido consentido
sobe sem esforço as tuas escarpas
Potencial qualidade do outro
o teu segredo está
numa parábola
numa elipse
num ponto só
infinitamente alheio e sem medida.
[ O pavão negro, 2003]
A ausência
Oh como te ex-amo
como tudo se torna direção imprecisa
É uma coisa terrível!
tudo ser tão evidente
no seu vazio
controverso
verso
Seta por dentro
a onda vive de perfil o seu ex-ato
imprecisando as criaturas
Oh como o eu-outro aflora culminando
falo contigo
mas é um outro que contigo fala
um outro
que ex-amadamente arde ainda
Não vês a curva da palavra?
A face do amor é ausência de rosto.
[A idade da escrita, 1998]
Ana Hatherly, Porto, Portugal (1929- )
Imagens da autora.

06/09/2012

A idade da escrita - poema ensaio


Costumo dizer que a minha atividade começa com a escrita
porque toda a minha atividade gira à volta da escrita.
Mas não há só uma escrita nossa
a que escrevemos para nós:
a escrita é POR CAUSA DO TEMPO
é POR CAUSA DOS OUTROS
é para não esquecermos
é para sermos lembrados é PARA SERMOS ALÉM DE
EXISTIRMOS
sinal
vínculo
aceno
Costumo dizer que a nossa era é
a era da ESCRITALIDADE
e da IDADE DA ESCRITA
porque a nossa era é
a era da ESCRIBATURA
a IDADE DA ESCRAVATURA DA ESCRITA
A noção de ESCRITA alargou-se
a TUDO
a QUASE TUDO
porque a escrita é sinônimo de IMAGEM
imagem para se ver
para se ter
para se ser
Escrevo para compreender
para apreender
a escrita é o que me revela
um mundo
o mundo
II
Escrevo e descrevo
e descrevendo
o tempo insere-se nas linhas
e nas entrelinhas em que escrevo
escrevendo imagens
que a si mesmas se descrevem
desescrevendo o tempo
A ESCRITA
é a petrificada imagem de um percurso
do rio antigo
da seta temporal
Ainda não sabemos pensar de outro modo
De caminho o arabesco insinua-se
e mesmo quando maquinal
a escrita prolonga A MÃO
é o prolongamento extensíssimo da mão
indica
disciplina
explosão contida
Onda surda é a escrita.
Ana Hatherly, em A idade da escrita E OUTROS POEMAS - São Paulo: Escrituras Editora
OBS: Os desenhos são de Ana Hatherly, que além de poeta, escritora e cineasta, é artista plástica, nascida na cidade do Porto, Portugal, em 1929.

04/09/2012

pingos


São tudo o que ela consegue ver, salpicando os azulejos brancos da parede do banheiro. Eles explodem na sua cabeça, espirrando miolos de água, enquanto outros enxergam o seu destino efêmero de queda; a cantilena incessante dos pingos torna-se um murmúrio de raiva, enquanto se despedaçam em irmãos menores que se juntam com os outros miolos, outras águas, destinos sombrios. A mulher enxerga a parede e dezenas de olhos cristalinos devolvem o olhar com a fúria dos que estão mortos. Eles escorrem pela parede do banheiro, alguns com a rapidez do pensamento, ansiosos para chegar ao chão, outros com a elegância das pessoas que usam cartola, ultrapassando cada rebite entre azulejos com a delicadeza de quem transpõe poças em dias de chuva, um passo de cada vez. A mulher encosta a testa no frio da parede, e os pingos da testa encontram os que estão nos azulejos; o equilíbrio rompe quando gotas estranhas se misturam, subitamente, sem nenhuma apresentação preliminar, a guerra para manter sua integridade resultando em uma carnificina incolor no branco indiferente dos azulejos. Pingos, muitos, continuam caindo para a morte certa, e no meio dessa precipitação uma vida inteira passa; alguns se entregam a orgias desenfreadas com dezenas de desconhecidos, outros rezam para seu deus de ferro e quentes engrenagens e existem aqueles que sonham com a derradeira unidade, circulando ao redor do ralo do banheiro. Contudo, alguns pingos são diferentes dos outros: eles brotam de dentro do castanho da mulher. Ao se depararem com o caos que reina ao seu redor, tentam voltar, mas é tarde, e os pingos sem gosto sentem um inesperado prazer ao bater nos salgados e dividí-los em pedaços, provando que são iguais, não importa a origem. O corpo da mulher besunta-se com o sangue invisível das dezenas, centenas, milhares que já morreram tentando destruir o concreto da pele; a violência preenche o banheiro enquanto os mortos se empilham, escorrendo para o chão, onde existem pingos vermelhos que, dotados de sabedoria ancestral, não se misturam e escorrem em um fluxo contínuo, levando consigo o feto tão sonhado, rodopiando ao redor do ralo com a placidez das coisas inveitáveis.
Conto extraído de O homem despedaçado, de Gustavo Czekster, mestre em Literatura Comparada, pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
OBS: As fotos do "cabeçalho" e da postagem são de Amy Hildebrand, fotógrafa cega.

31/08/2012

Espelho


Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo imediatamente
Do jeito que for, desembaçado de amor ou aversão.
Não sou cruel, apenas verdadeiro -
O olho de um pequeno deus, de quatro cantos.
Na maior parte do tempo medito sobre a parede em frente.
Ela é rosa, pontilhada. Já olhei para ela tanto tempo,
Eu acho que ela é parte do meu coração. Mas ela oscila.
Rostos e escuridão nos separam toda hora.

Agora sou um lago. Uma mulher se dobra sobre mim,
Buscando na minha superfície o que ela realmente é.
Então ela se vira para aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e as reflito fielmente.
Ela me recompensa com lágrimas e um agitar das mãos.
Sou importante para ela. Ela vem e vai.
A cada manhã é o seu rosto que substitui a escuridão.
Em mim ela afogou uma menina, e em mim uma velha
Se ergue em direção a ela dia após dia, como um peixe terrível.

Sylvia Plath, Massachusets (EUA) - 1932-1963
Tradução: André Cardoso

28/08/2012

Quebras...


Horizonte partido, minuciosamente triturado - cacos muitos, o pó a impregnar as vísceras, as entranhas:
estranhas.
A ilusão ótica azuleja o olho, oblitera a percepção, os sentidos; o olho embaçado não distingue as
máscaras e pisa inclemente sobre os sonhos.
Os espelhos distorcidos refletem as verdadeiras imagens, e o olho, - desconfie dele - enxerga apenas o que quer ver, o que necessita ver. Como dizia o sábio Guimarães Rosa, "os olhos, por enquanto, são a porta do engano". Quantos espelhos seriam necessários aos olhos para apreender as imagens que visualiza, as molduras que as contornam? De quantas madrastas é
povoada a vida? São tantos os espelhos, tantas as imagens falsas. Difícil é juntar os cacos, jogá-los no lixo sem se cortar!
No mapa do desengano, da decepção, é necessário uma lupa para encontrar, quem sabe, uma ilhazinha, que seja, para sobreviver e à noite admirar as estrelas...

24/08/2012

Dentaduras duplas


Dentaduras duplas!
Inda não sou bem velho
para merecer-vos...
Há que contentar-me
com uma ponte móvel
e esparsas coroas.
(Coroas sem reino,
os reinos protéticos
de onde proviestes
quando produzirão
a tripla dentadura,
dentadura múltipla,
a serra mecânica,
sempre desejada,
jamais possuída,
que acabará
com o tédio da boca,
a boca que beija,
a boca romântica?...)
Resovin! Hecolite!
Nomes de países?
Fantasmas femininos?
Nunca: dentaduras,
engenhos modernos,
práticos, higiênicos,
a vida habitável:
a boca mordendo,
os delirantes lábios
apenas entreabertos
num sorriso técnico,
e a língua especiosa
através dos dentes
buscando outra língua,
afinal, sossegada...
A serra mecânica
na tritura amor.
E todos os dentes
extraídos sem dor.
E a boca libeerta
das funções poético-
-sofístico-dramáticas
de que rezam filmes
e velhos autores.
Dentaduras duplas:
dai-me enfim a calma
que Bilac não teve
para envelhecer.
Desfibrarei convosco
doces alimentos,
serei casto, sóbrio,
não vos aplicando
na deleitação convulsa
de uma carne triste
em que tantas vezes
me eu perdí.
Largas dentaduras,
vosso riso largo
me consolará
não sei quantas fomes
ferozes, secretas
no fun do de mim.
Não sei quantas fomes
jamais compensadas.
Dentaduras alvas,
antes amarelas
e por que não cromadas
e por que não de âmbar?
de ânbar? de âmbar!
feéricas dentaduras,
admiráveis presas,
mastigando lestas
e indiferentes
a carne da vida!
Carlos Drummond de Andrade, a Onestaldo de Penafort, em Sentimento do Mundo

21/08/2012

A intuição e a Criação







Fayga Ostrower nasceu em Lodz(Polônia) e emigrou para o Brasil aos 14 anos de idade. Foi gravadora, pintora, desenhista, escritora e professora de Teoria da Arte. São de sua autoria: Criatividade e processos de criação, Universos da arte, Acasos e criação artística.
(1920-2001)